quinta-feira, 17 de abril de 2008

Um clássico, apesar de tudo


O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa (1950)
Coleção As Crônicas de Nárnia
C.S.Lewis
Martins Fontes (edição de 2003)
Tradução: Paulo Mendes Campos
Revisão da tradução: Silvana Vieira
Ilustrações: Pauline Baynes


Durante a Segunda Guerra Mundial, os irmãos Pevensie, Peter, Susan, Edmund e Lucy, são alojados na fabulosa casa de um professor que nunca viram antes. Como tantos outros jovens e crianças londrinos, eles foram enviados para casas de voluntários desconhecidos, no campo, bem longe da capital constantemente bombardeada onde viviam. Um dia, brincando de esconder, eles descobrem um armário mágico, cujo fundo oferece passagem para uma terra encantada chamada Nárnia. Lá, as crianças têm que ajudar o Deus-Leão Aslam e seu exército de criaturas mitológicas a vencer a Feiticeira Branca que condenou aquela terra a um longo e tenebroso inverno sem natais.

Em 1950, C.S.Lewis escreveu essa história, que deu origem a uma das mais famosas sagas de fantasias do mundo, seguindo o exemplo de seu amigo e colega de magistério J.R.R.Tolkien. Para quem não sabe, Tolkien é o autor da famosa trilogia O Senhor dos Anéis. Lewis não teve o fôlego de seu amigo para criar genealogias e línguas próprias para seu livro. Provavelmente, nem queria fazer isso. Professor de filosofia e história antiga, além de amante da teologia e cristão fervoroso, uma de suas principais intenções era criar uma grande alegoria cristã.

Tolkien não gostava de As Crônicas de Nárnia. E gostava menos ainda das alegorias cristãs utilizadas pelo amigo. E ele não deixa de ter razão. O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa passaria tranqüilamente suas mensagens através da fantasia, sem ser necessário que Lewis tentasse catequizar ninguém. Nada contra a utilização de alegorias cristãs. Elas têm tanto direito de estarem presentes no livro quanto os faunos, minotauros e centauros da mitologia grega. A questão é que o texto perde a mão quando as alegorias cristãs se tornam óbvias demais. Literatura é sutileza. E isso, às vezes, falta em Lewis, na sua ânsia de remeter ao cristianismo.

O autor se sai bem melhor quando é possível ler, em sua Nárnia, uma metáfora do que foi a Europa assolada por um sangrento conflito mundial. É possível, no entanto, ver em Nárnia um refúgio dos horrores da Segunda Guerra. Naquele verão, as crianças alojadas na casa de um professor teriam descoberto, na magia da literatura e da arte de inventar histórias, uma maneira de suportar os bombardeios, a saída forçada de casa, o alojamento no campo na casa de um estranho. A Feiticeira Branca, por exemplo, tem uma polícia secreta que nada fica a dever à SS de Hitler.

Além disso, através de Nárnia as crianças teriam encontrado uma maneira de lutar e vencer o inimigo. Fosse ele interno, como os conflitos de Edmund, o irmão traidor, fosse ele externo, como Hitler e seus aliados, que acuaram o reino do leão (Inglaterra), condenando-o a um longo e tenebroso inverno, feito de bombas, mortes e fome.

Os irmãos Pevensie teriam se fortalecido tanto neste verão de histórias, imaginação e fantasia, que entraram na casa do professor como crianças e teriam saído, metaforicamente, como adultos, prontos para conviverem uns com os outros com respeito e a enfrentar a vida e o mundo.

Bem, por causa disso tudo ou apesar disso tudo, o livro é um clássico, assim como o restante de As Crônicas de Nárnia, e vale a pena ser conhecido. O filme, produzido pela Disney, é fiel às páginas escritas por Lewis e, através da leitura competente do diretor Andrew Adamson, consegue ressaltar os elementos humanos, superando, às vezes, Mestre Lewis em sua narrativa. As falhas do filme são, em sua maior parte, decorrentes do próprio livro em que foi baseado.

O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa tem seu valor por ser, há décadas, um dos primeiros livros em que gerações de inglesinhos são apresentadas a uma mistura de figuras mitológicas e elementos fantásticos com personagens do suposto mundo real, criando uma ponte entre a realidade e a fantasia.

Aqui no Brasil, Monteiro Lobato fez essa mistura para nós. Antes de Lewis, vale ressaltar. Quem não se lembra das festas no Sítio do Picapau Amarelo, que reuniam centauros, personagens dos contos de fada e até mesmo Dom Quixote? Eu me encantei com faunos e minotauros no labirinto das páginas de Lobato. E considero, mais do que qualquer Lewis (com a exceção honrosa do Carroll, talvez), livros como O Picapau Amarelo algumas das maiores obras-primas da fantasia. Melhor ainda, sem nunca perder a mão das metáforas.

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