terça-feira, 15 de abril de 2008

Herança sem preconceitos



ABC do Mundo Árabe
Edições SM (2006)
Paulo Daniel Farah
Ilustrações de Alê Abreu




O Brasil é um país de imigrantes. Ninguém nunca precisou me dizer isso. Eu sei. Sempre soube. É uma verdade que está nos meus olhos, cabelos, nariz, pele. Está na comida cujo aroma enche minha casa nos dias de festa. Está em diversas palavras que troco somente com minha família, pois só seus membros saberão, no meu círculo de conhecidos, o que elas querem dizer. Enfim, o Brasil ser um país de imigrantes é uma verdade que está no meu ser, no meu pensar e no de milhões de brasileiros.

Nem todos chegaram aqui com alegria. Alguns vieram como escravos. Outros, movidos pela fome e pelos horrores da guerra. Mas muitos chegaram atraídos pela oportunidade de plantar uma vida melhor em uma terra tão jovem, cheia de oportunidades.
Os avós de minha avó paterna vieram da Alemanha. Um bisavô paterno, da Polônia. Meu avô materno nasceu em Portugal. E dois de meus bisavós maternos vieram do Líbano. Ele, eu não conheci. Ela chamava-se Alice. Eu a conheci. Mas nunca ouvi uma palavra em árabe dos seus lábios. Tal privilégio pertence à infância de minha mãe e tios que, muitas vezes de ouvidos colados às portas, ouviam as misteriosas e exóticas conversas em árabe de minha bisavó com os irmãos.

Minha herança é menor, como sói ocorrer aos legados repartidos de geração em geração. Minhas lembranças foram regadas a pequenas palavras ensinadas para divertir crianças, a mesas abarrotadas de esfihas, pão sírio, quibe cru e vidros repletos de biscoitos cobertos de zatar. No natal, juntava-se aos damascos e tâmaras comprados no Saara, no centro do Rio, uma jujuba gigante de aniz, cujo nome agora me escapa. Mas minhas lembranças trazem também cenas de lamúrias e culpas. Sim, está tudo incluído no pacote. A parte boa e a nem tanto assim. Faz parte das dores e delícias de sermos quem somos, depositários de culturas ancestrais mescladas umas às outras.

Este sentimento de pertencer a mundos e culturas diversas não está presente apenas em mim, é óbvio. Conheço gente que tem mil histórias para contar a respeito de seus antepassados italianos, espanhóis, ucranianos ou japoneses. Eu mesma tenho histórias a contar sobre minhas outras “partes”, como a portuguesa e a polonesa. Mas foi minha herança sírio-libanesa que se viu mexida ao folhear o ABC do Mundo Árabe, de Paulo Daniel Farah.

Farah, professor da USP, dirige o Centro de Estudos Árabes de São Paulo. Morou no Oriente Médio e na África e traduziu obras do árabe, do persa, francês, inglês e alemão, além de escrever regularmente sobre a cultura, a literatura e a história árabes. Através das Edições SM, Farah fez chegar às mãos das crianças brasileiras uma espécie de dicionário, onde, percorrendo o alfabeto, ele apresenta paisagens, comidas, palavras, animais, cidades, hábitos e personalidades da cultura árabe.

Estão presentes os indefectíveis verbetes camelo e quibe. Mas as crianças brasileiras, descendentes de árabes ou não, também terão a oportunidade de saber que o nome daquele pano que os homens usam na cabeça para se proteger do sol é keffia. Poderão ainda conhecer o prêmio Nobel Naguib Mahfuz de uma forma resumida e simpática, e aprender o significado de diversos nomes próprios em árabe. Os verbetes não são longos, mas o livro levou dois anos para ser feito, pois as palavras foram cuidadosamente escolhidas para oferecer, em uma linguagem acessível às crianças, panoramas históricos e contemporâneos do mundo árabe.

As ilustrações de Alê Abreu são um encantamento à parte. A primeira levou oito meses para sair, pois muitos desenhos foram feitos até chegar ao espírito pretendido pelo autor, utilizando técnicas variadas, como lápis, caneta hidrográfica, aquarela e acrílica. Tanto esforço valeu a pena. O resultado é deslumbrante como uma viagem de tapete mágico, traduzindo em imagens, de um delicado colorido, toda a riqueza da herança árabe. Uma herança que, a propósito, não é só minha. Como escreveu o também descendente de árabes Milton Hatoum, no prefácio do livro, “o mundo herdou da cultura árabe conhecimentos de aritmética, arquitetura, agricultura, medicina, astronomia, filosofia e literatura”.

O ABC do Mundo Árabe é, portanto, um excelente caminho para aprender mais, sem preconceitos, sobre um povo que ajudou a construir a história do Brasil e do próprio Ocidente, despertando o desejo de que mais culturas e costumes sejam conhecidos ainda na infância.

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