segunda-feira, 14 de abril de 2008

A arte encantada de ouvir e contar histórias


A princesinha
Editora 34 (2000)
Frances Hodgson Burnett
Tradução de Ana Maria Machado
Texto integral


Durante muitos anos, quase tantos quanto posso lembrar, Sarah Crewe foi uma de minhas personagens favoritas. O interessante é que ela não era simpática e alegre. Sarah era uma criança séria, calada, órfã de mãe, vinda da exótica e colorida Índia para a cinzenta e sisuda Inglaterra do final do século XIX. E não era uma princesa no sentido real da palavra. Sua realeza estava na delicadeza dos seus modos e na dignidade das suas atitudes, embora os mais mesquinhos acreditassem, no início do livro, que estava em sua considerável fortuna.

Ainda posso vê-la entrando no colégio dirigido por Miss Minchin, levada pelo pai que tanto a amava. Aliás, nas inúmeras vezes em que li o livro, eu me perguntei como um homem tão bondoso não fora capaz de enxergar toda a ambição e crueldade da diretora daquele internato de garotas. Mas, como um conto de fadas que se preze precisa de um homem ingênuo como o pai da Cinderela e de gente má como a madrasta, eu sempre deixava esse detalhe para lá. E mergulhava, extasiada, na descrição da vida luxuosa e encantada de Sarah, transformada subitamente, após a morte de seu pai, em um cotidiano de provações e miséria.

O que mais me atraía nesse delicado clássico moderno da literatura mundial era a estratégia desenvolvida por Sarah para sobreviver em meio à torrente de humilhações, frio e fome a que ela foi submetida no sótão do colégio da recalcada Miss Minchin e de sua irmã submissa e apagada. Pois aquela criança-personagem introvertida, mas amável, apreciadora dos livros era, mesmo antes do infortúnio que se abateu sobre sua sorte, uma extraordinária contadora de histórias.

No início, Sarah inventava e contava histórias ao pé da rica lareira de seu lindo quarto. Sua audiência, sempre democrática, era formada por todas as marginalizadas do colégio. A caçulinha, a gordinha desajeitada, a criada de sua idade, explorada pela patroa inescrupulosa: todas elas encontravam, na força das palavras e no envolvimento diário com as narrativas de Sarah, o estímulo necessário para seguirem adiante com suas vidas e seus problemas. Mais ou menos como hoje encontramos, em uma novela ou um filme, um momento de relaxamento e de escape. É diante da tevê, vivenciando a história dos outros, que costumamos passar a limpo nosso dia e nossas próprias histórias.

Ao ver-se abatida pela miséria, foi na força da imaginação que Sarah encontrou recursos para tolerar sua nova vida. Inteligente, a menina sabia que tudo aquilo não passava de um paliativo. Mas também sabia que, sem esse precioso alimento, sua alma morreria. E não restaria mais nada, a não ser a aridez da luta diária por uma mera sobrevivência.

O final trouxe felicidade à protagonista, embora não do jeito que eu esperava. Desde que a morte do pai de Sarah foi anunciada, em meio às comemorações do seu décimo segundo aniversário, desejei a volta dele, do fundo do meu coração leitor de apenas sete anos de idade. Mas não houve um engano: o pobre homem realmente perecera em suas minas de diamante. Esse final feliz frustrado foi uma das muitas lições que aprendi com esse livro.
A outra grande lição que recebi, sem sentir, e que só hoje percebo ter se tatuado em minha alma, tem a ver com o valor da arte de inventar e contar histórias. Nunca mais saiu de dentro de mim a certeza de como as narrativas, em quaisquer formas que se apresentem a nós, transformam nossas vidas em algo muito maior do que a vida em si própria. Transcendem a nossa luta pela sobrevivência diária para colorir nossa existência, para nos fazer maiores e mais fortes, aptos a enfrentar os encantos e os desencantos inerentes ao nosso dia-a-dia.

A princesinha Sarah me fez acreditar no poder e na imensa felicidade ofertada pelas palavras e pela arte de inventar e contar histórias. Graças a livros como esse, obtive a graça de ler e escrever histórias por prazer. E de saber encontrar, nas narrativas, aliadas para transformar meu cotidiano em algo extraordinário. Ao menos enquanto durar a arte encantada de ouvir e contar histórias.

Em tempo: existem outras edições de The little princess, publicadas por outras editoras. A edição que eu li quando era criança foi publicada pela Ediouro, com texto em português de Oswaldo Washington. Chamava-se A Pequena Princesa e fazia parte da Coleção Elefante. Quase já não é possível encontrá-la.

A Editora Ridell tem uma edição resumida em 32 páginas. Mas o texto integral é sempre mais rico; ainda mais em um livro onde os maiores encantos estão nos detalhes.

Outros livros famosos de Frances H. Burnett também foram publicados por mais de uma editora. Entre eles, O Jardim Secreto e O Pequeno Lorde.

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