A princesinha
Editora 34 (2000)
Frances Hodgson Burnett
Tradução de Ana Maria Machado
Texto integral
Editora 34 (2000)
Frances Hodgson Burnett
Tradução de Ana Maria Machado
Texto integral
Durante muitos anos, quase tantos quanto posso lembrar, Sarah Crewe foi uma de minhas personagens favoritas. O interessante é que ela não era simpática e alegre. Sarah era uma criança séria, calada, órfã de mãe, vinda da exótica e colorida Índia para a cinzenta e sisuda Inglaterra do final do século XIX. E não era uma princesa no sentido real da palavra. Sua realeza estava na delicadeza dos seus modos e na dignidade das suas atitudes, embora os mais mesquinhos acreditassem, no início do livro, que estava em sua considerável fortuna.
Ainda posso vê-la entrando no colégio dirigido por Miss Minchin, levada pelo pai que tanto a amava. Aliás, nas inúmeras vezes em que li o livro, eu me perguntei como um homem tão bondoso não fora capaz de enxergar toda a ambição e crueldade da diretora daquele internato de garotas. Mas, como um conto de fadas que se preze precisa de um homem ingênuo como o pai da Cinderela e de gente má como a madrasta, eu sempre deixava esse detalhe para lá. E mergulhava, extasiada, na descrição da vida luxuosa e encantada de Sarah, transformada subitamente, após a morte de seu pai, em um cotidiano de provações e miséria.
O que mais me atraía nesse delicado clássico moderno da literatura mundial era a estratégia desenvolvida por Sarah para sobreviver em meio à torrente de humilhações, frio e fome a que ela foi submetida no sótão do colégio da recalcada Miss Minchin e de sua irmã submissa e apagada. Pois aquela criança-personagem introvertida, mas amável, apreciadora dos livros era, mesmo antes do infortúnio que se abateu sobre sua sorte, uma extraordinária contadora de histórias.
No início, Sarah inventava e contava histórias ao pé da rica lareira de seu lindo quarto. Sua audiência, sempre democrática, era formada por todas as marginalizadas do colégio. A caçulinha, a gordinha desajeitada, a criada de sua idade, explorada pela patroa inescrupulosa: todas elas encontravam, na força das palavras e no envolvimento diário com as narrativas de Sarah, o estímulo necessário para seguirem adiante com suas vidas e seus problemas. Mais ou menos como hoje encontramos, em uma novela ou um filme, um momento de relaxamento e de escape. É diante da tevê, vivenciando a história dos outros, que costumamos passar a limpo nosso dia e nossas próprias histórias.
Ao ver-se abatida pela miséria, foi na força da imaginação que Sarah encontrou recursos para tolerar sua nova vida. Inteligente, a menina sabia que tudo aquilo não passava de um paliativo. Mas também sabia que, sem esse precioso alimento, sua alma morreria. E não restaria mais nada, a não ser a aridez da luta diária por uma mera sobrevivência.
O final trouxe felicidade à protagonista, embora não do jeito que eu esperava. Desde que a morte do pai de Sarah foi anunciada, em meio às comemorações do seu décimo segundo aniversário, desejei a volta dele, do fundo do meu coração leitor de apenas sete anos de idade. Mas não houve um engano: o pobre homem realmente perecera em suas minas de diamante. Esse final feliz frustrado foi uma das muitas lições que aprendi com esse livro.
A outra grande lição que recebi, sem sentir, e que só hoje percebo ter se tatuado em minha alma, tem a ver com o valor da arte de inventar e contar histórias. Nunca mais saiu de dentro de mim a certeza de como as narrativas, em quaisquer formas que se apresentem a nós, transformam nossas vidas em algo muito maior do que a vida em si própria. Transcendem a nossa luta pela sobrevivência diária para colorir nossa existência, para nos fazer maiores e mais fortes, aptos a enfrentar os encantos e os desencantos inerentes ao nosso dia-a-dia.
A princesinha Sarah me fez acreditar no poder e na imensa felicidade ofertada pelas palavras e pela arte de inventar e contar histórias. Graças a livros como esse, obtive a graça de ler e escrever histórias por prazer. E de saber encontrar, nas narrativas, aliadas para transformar meu cotidiano em algo extraordinário. Ao menos enquanto durar a arte encantada de ouvir e contar histórias.
Em tempo: existem outras edições de The little princess, publicadas por outras editoras. A edição que eu li quando era criança foi publicada pela Ediouro, com texto em português de Oswaldo Washington. Chamava-se A Pequena Princesa e fazia parte da Coleção Elefante. Quase já não é possível encontrá-la.
A Editora Ridell tem uma edição resumida em 32 páginas. Mas o texto integral é sempre mais rico; ainda mais em um livro onde os maiores encantos estão nos detalhes.
Outros livros famosos de Frances H. Burnett também foram publicados por mais de uma editora. Entre eles, O Jardim Secreto e O Pequeno Lorde.
A princesinha Sarah me fez acreditar no poder e na imensa felicidade ofertada pelas palavras e pela arte de inventar e contar histórias. Graças a livros como esse, obtive a graça de ler e escrever histórias por prazer. E de saber encontrar, nas narrativas, aliadas para transformar meu cotidiano em algo extraordinário. Ao menos enquanto durar a arte encantada de ouvir e contar histórias.
Em tempo: existem outras edições de The little princess, publicadas por outras editoras. A edição que eu li quando era criança foi publicada pela Ediouro, com texto em português de Oswaldo Washington. Chamava-se A Pequena Princesa e fazia parte da Coleção Elefante. Quase já não é possível encontrá-la.
A Editora Ridell tem uma edição resumida em 32 páginas. Mas o texto integral é sempre mais rico; ainda mais em um livro onde os maiores encantos estão nos detalhes.
Outros livros famosos de Frances H. Burnett também foram publicados por mais de uma editora. Entre eles, O Jardim Secreto e O Pequeno Lorde.
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