domingo, 29 de novembro de 2009

A day in the life


O rapaz que não era de Liverpool
Edições SM (2006)
Caio Riter
Vencedor do I Prêmio Barco a Vapor

A capa de Abbey Road, um dos últimos álbuns dos Beatles, é antológica. Já rendeu todo tipo de especulação e transformou em cult tudo e todos porventura enquadrados naquela fotografia. O carro que aparece na foto (um beetle, vejam só!), depois de ter sua placa roubada repetidas vezes, foi vendido, em 1986, por 23.000 libras. Desde então, está em exposição em um museu. E o fusquinha só foi fotografado por acaso: a produção queria que seu dono o tirasse da vaga. Só que ele estava viajando. Caprichos do destino...

Também é por um capricho do destino que Marcelo, um rapazinho que como eu, você e o autor, Caio Riter, amava os Beatles, talvez os Rolling Stones e, com toda certeza, a sua família, vê seu mundo desmoronar em uma aula de biologia. Tão clássico quanto um hit dos Fab Four, o exemplo da cor dos olhos que ilustra as leis da genética já deve ter levado muitos adolescentes a somarem AAs e aas afim de certificarem-se de suas origens. Foi o que Marcelo fez. E a conta, simplesmente, não fechou: seus pais não poderiam ser seus pais.

Aos quinze anos, in a day in the life como outro qualquer, Marcelo descobriu que havia sido adotado. E nem mesmo a paixão pelos quatro rapazes de Liverpool, herdada do pai, doravante chamado apenas de Pedro Paulo, poderá ajudá-lo. Marcelo não está com o passo trocado, como Paul na clássica capa de Abbey Road. Ele, simplesmente, nem se sente mais parte do Abbey Road construído por sua família. Na verdade, o Yellow Submarine mudou de rumo e, talvez, nem seja mais amarelo. Sem certeza de mais nada, Marcelo precisa reconstruir sua vida e sua identidade, um peso a mais em no difícil período de transição que costuma ser a passagem da infância para a vida adulta. Boy, you´re gonna carry that weight a long time...

Foi com esse texto, que aborda de forma sensível a questão da adoção, sob o ângulo de sua descoberta na adolescência, que Caio Riter venceu o I Prêmio Barco a Vapor, no ano de 2005, promovido pelas Edições SM.

domingo, 15 de novembro de 2009

Buscando diferenças, topando com igualdades


O Clube dos Sete (2001)
Editora 34
Marconi Leal
Ilustrações: Newton Foot

Uma das matérias mais interessantes com a qual já me deparei na minha vida acadêmica chamava-se “Imagens e representações do Brasil”. Nela, a antropóloga e socióloga Maria Cláudia Coelho mostrava, através de dois filmes nacionais, o que nós, brasileiros, temos de particular e o que temos de comum com os outros povos.

O primeiro filme era “Dona Flor e seus Dois Maridos”. Lá estavam a brejeirice morena de Flor, a gaiatice de Vadinho e muitos outros traços que distinguem nossos tipos e nossa cultura das outras. O segundo era “Eu sei que vou te amar”. E o curioso é que não encontramos ali nenhum marca registrada de brasilidade. Aqueles personagens poderiam ter qualquer nacionalidade, e a história poderia se passar em qualquer lugar.

Os alunos protestaram, dizendo que no segundo filme não havia nada característico do Brasil. Ao que foi argumentado de volta, com muita razão, que aquilo ali na tela também era Brasil.

Estamos sempre buscando diferenças, mas a verdade é que temos hábitos, sentimentos, padrões de comportamento como o de muitos seres humanos de diversas partes do planeta. Ser brasileiro é muito singular e, ao mesmo tempo, é igual a ser francês, americano, africano ou japonês. E tal raciocínio, é claro, pode ser aplicado, da mesma forma, a regiões, estados ou mesmo cidades brasileiras, como São Paulo e Rio de Janeiro.

O Clube dos Sete me chamou a atenção, na preliminar leitura de orelha que antecede a compra, justamente porque a trama se passa no Recife. E, procurando pelos traços singulares que teria uma história de detetives do Nordeste, eu encontrei os traços comuns entre as diversas regiões e estados brasileiros.

A trama, interessante e bem-amarrada, poderia se passar em qualquer metrópole do país, estrelada por qualquer grupo de jovens. Eles são inteligentes, amigos, engraçados e enfrentam dilemas comuns a quaisquer garotos, como, por exemplo, cobiçar a namorada do próximo. Até aí, nada diferente. E por que deveria ser diferente? Pelo simples fato de se passar em Recife?

Marconi Leal mostra, em O Clube dos Sete, que apesar do cenário fugir ao padrão Rio-São Paulo, estamos lidando com personagens tão carismáticos e espertos quanto os jovens detetives paulistanos de Pedro Bandeira ou a provocante carioca Carol, de Carlos Heitor Cony e Anna Lee. E o mais interessante é que os próprios personagens centrais, meninos bem-nascidos do Recife, que nunca tinham apanhado um ônibus na vida, descobrem que os meninos do recifense Morro da Maré também têm um clubinho. São os traços comuns, mais uma vez, superando os singulares. Dessa vez, dentro das classes sociais de uma das “cidades partidas” brasileiras.

Ah, como esses garotos “de família” vão parar no morro? Ora, como em qualquer boa história de detetive de qualquer parte do Brasil! Uma mensagem misteriosa em código os leva até lá, depois que o avô do narrador João, um ex-militante de esquerda perseguido pelo regime militar, sofre uma espécie de atentado. Para saber mais, só lendo o livro, para descobrir, além do mistério em si, tudo o que o Recife tem; não de diferente, mas, sim, de igual às outras cidades do Brasil e do mundo.

As aventuras de O Clube dos Sete continuaram em mais dois livros: O Sumiço e Perigo no Sertão.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Extremamente belo e incrivelmente inteligente

Extremamente Alto & Incrivelmente Perto
Editora Rocco (2006)
Jonathan Safran Foer
Tradução: Daniel Galera

O.K. Não é um livro infanto-juvenil. Mas o protagonista é um menino. Não foi feito "para crianças". Mas é uma das melhores histórias sobre uma delas que li nos últimos tempos. E, cá entre nós, O Pequeno Príncipe foi mesmo feito para crianças?

Na verdade, é difícil até achar a palavra certa para definir esse livro de Jonathan Safran Foer. Tentei usar, em uma conversa, a palavra “comovente”, mas achei que soava piegas, o que não combinava, em absoluto, com o livro. Apelei, então, dizendo que era “comovente, mas não era do tipo que faz você chorar”. E ressalvei: “é comovente e, no entanto, faz você sorrir. Mas não é engraçado. Quer dizer, é. Mas muito triste ao mesmo tempo”.

Foi em meio a esse turbilhão de adjetivos inadequados e emoções conflitantes, que a palavra “patético” me veio a mente, antes que eu me transformasse no personagem de Foer que, após o bombardeio de Dresden, durante a Segunda Guerra Mundial, vai perdendo as palavras e a capacidade de falar e comunicar seus sentimentos.

Temos o hábito de ligar “patético” à palermice. Mas uma situação patética, levando a sério a definição do dicionário, não evoca a idiotice. Fica entre o choro e o riso, despertando um sentimento de piedade ou tristeza. Uma situação patética confrange, toca e expõe as fraquezas humanas como um espelho, provocando, ao mesmo tempo, um nó na garganta e um sorriso no canto da boca do leitor.

Oskar Schell, o protagonista de Extremamente Alto & Incrivelmente Perto é um dos mais interessantes meninos de nove anos que o leitor conhecerá, durante muitos anos, na literatura contemporânea. O garoto é uma figurinha inteligente, espirituosa e carente, dono de habilidades, manias e idéias originalíssimas.

Um dia, o mundo de coleções, cartinhas para cientistas famosos e caças ao tesouro de Oskar cai, literalmente, por terra quando o pai, seu maior amigo e companheiro, morre no atentado das Torres Gêmeas. A última caça ao tesouro proposta por ele permaneceu sem resposta. Aliás, toda vida de Oskar parece sem resposta, até o dia em que ele encontra no closet do pai uma misteriosa chave. Ela está dentro de um envelope, onde se vê escrita apenas uma palavra: Black. Black pode ser muitas coisas, mas, enquanto permanecer sem significado para o menino, será apenas escuridão. Em busca da solução do mistério, Oskar varrerá os cinco distritos de Nova York à procura de uma fechadura para a chave. E de um sentido para sua vida.

Como em quadro de Hopper, o livro traz à tona uma solidão sufocante. Mas é extremamente belo e incrivelmente inteligente. Os personagens que surgem ao longo da busca desse pequeno príncipe pós-moderno são, em sua maioria, comoventes e originais. O olhar agudo e, ao mesmo tempo, infantil de Oskar torna tudo e todos não apenas interessantes, mas inesquecíveis. E a criatividade de Jonathan Safran Foer torna a busca de Oskar ainda mais instigante, ao lançar mão de fotografias, gravuras e tantos efeitos especiais gráficos quanto se pode usar em um livro para adultos. É quase um livro-instalação, feito para ser lido, tocado, revirado, investigado. E sentido, mais do que tudo. Pois o autor foge do cinismo que, tantas vezes, impera na literatura contemporânea, e faz a difícil opção pelo sentimento. Escrevendo de forma extremamente trágica e incrivelmente cômica, ele revela-se um mestre na construção de cenas patéticas, com tudo de tocante e poético que o verdadeiro significado dessa palavra encerra.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Os deuses devem estar loucos

O Ladrão de Raios
(série Percy Jackson e os Olimpianos)
Editora Intrínseca (2008)
Rick Riordan


O sucesso estrondoso da série Harry Potter fez com que a o bruxinho de Hogwarts tivesse filhotes. A maioria fixou-se no conceito de que a magia ainda é capaz de encantar leitores do novo milênio. E bruxinhos e bruxinhas pulularam das páginas dos livros.

Rick Riordan, “pai” do personagem Percy Jackson, inspirou-se escancaradamente na estrutura potteriana, com direito a escola especial e até mesmo a companheiros de aventura correspondentes aos de Potter. Mas apostou em outro tipo de narrativa que encanta sucessivas gerações há algum tempo. Para falar a verdade, há tempos imemoriais: a mitologia grega.

Saem os bruxos e entram os deuses do Olimpo, entre outros fantásticos personagens e animais mitológicos que incendeiam a imaginação ocidental desde sempre. Para quem pensava que os deuses estariam atualmente confinados às teorias psicanalíticas, Riordan prova que é possível trazê-los para o século XXI sem perder sua essência; pelo contrário, é possível incorporar os maneirismos de nossa época ao comportamento habitual dos deuses, monstros e personagens periféricos da mitologia grega, traduzindo-os para o universo dos leitores que pretende atingir, por mais louco que isso possa parecer.

Seguindo esse raciocínio, Ares em sua forma humana é um motoqueiro arruaceiro e grosso, Poseidon segue a linha surfista das antigas e Zeus... bem, Zeus, em um terno de risca de giz, só pode estar incorporando o Poderoso Chefão. E continuam aprontando todas com os mortais. Sim, ainda hoje são os deuses que controlam as forças da natureza e, por que não? O destino dos mortais, com os quais se relacionam com bastante intimidade. E essa é a grande sacada do autor: os deuses ainda procriam, ou seja, ainda existem filhos deles por aí, dos quais uma parte tem como destino ser um herói.

Percy Jackson, o herói da série, é um garoto de 12 anos que conseguiu, nos últimos seis, ser expulso de seis colégios diferentes. Tem dislexia, síndrome do déficit de atenção e, desde que se entende por gente, de vez em quando vê o que ninguém mais vê.
Ao ser tirado de sua Nova York natal para um acampamento que revela ser um campo de treinamento muito especial, Percy ganha sua primeira missão, que cumprirá ao lado de um sátiro e da filha de uma deusa.

O livro possui ritmo de aventura e boas tiradas sobre os humanos e sua forma de se relacionar com o mundo atual, ao lado de uma ou duas soluções preguiçosas para contornar obstáculos que nem chegam a ser acrescentadas à conta. Quanto à aventura se desenrolar através dos Estados Unidos, e não na Hélade... bem, é explicado que os deuses costumam transferir seus domínios para onde está o poder dos homens. Nessa lógica, o Olimpo está espetado bem acima do Empire State Building.

E, para quem teme uma salada de referências, pode ficar tranqüilo. Riordan mescla, através da narrativa em primeira pessoa conduzida por Percy, referências pop e mitos na medida certa para divertir e informar, embora as referências pop estejam mais ao alcance dos adultos, como é de praxe em roteiros atuais no formato “diversão-para-toda-a-família”, presente em produções para o cinema como Os Incríveis. Afinal, algum garoto de seus onze, doze anos, conseguiria visualizar, melhor dizendo, “sonorizar” o barqueiro Caronte cantarolando uma melodia de Barry Manilow? Mas, tirando o ponto em que os deuses se encontram com o século XXI, suas histórias originais são preservadas em muito melhor estado do que, por exemplo, a animação Hércules dos Estúdios Disney.

Em suma, a série é divertida e desperta a curiosidade para a riqueza da mitologia grega, matéria-prima do imaginário ocidental. Ponto para Riordan e seu pequeno grande herói, que chega ao Brasil ostentando diversas premiações nos Estados Unidos, tais como Livro Notável de 2005 do The New York Times e best-seller juvenil da Publishers Weekly, entre outros.