segunda-feira, 28 de junho de 2010

Correspondência Encantada - 2ª parte

Tanto as cartas quanto as intervenções da fada são divertidíssimas. Por diversas vezes, me peguei rindo das cenas e das idéias estapafúrdias que pareciam assolar a mente das jovens princesas. No entanto, a autora resiste bravamente à sátira fácil. Com sutileza, ela apresenta uma correspondência trocada entre mulheres. Especiais, encantadas, de outros tempos. O que for. Mas sempre mulheres.

As personalidades das princesas são bem diferentes, o que também garante grande parte da graça, já que o estilo das cartas segue, com habilidade, suas características. Talia (que seria o nome de batismo da Bela Adormecida) é ansiosa e cheia de idéias mirabolantes. Annette (nome verdadeiro de Cinderela) não nasceu nobre e conhece as agruras da vida plebéia, o que se reflete em seus discursos práticos e, de vez em quando, até politizados. Branca de Neve (como seu nome de batismo já era esquisito o suficiente, não precisou de outro) é a mais delicada e sonhadora das três, mas prova sua força na hora certa, como muitas vezes acontece com as mulheres de carinha de anjo e pensamentos quase infantis.

É divertidíssimo e, ao mesmo tempo, estranhamente delicado, ouvir as vozes das princesas narrando suas próprias histórias. Enquanto contam umas para as outras seus cotidianos e desventuras, tecem comentários sobre outros personagens, como Rapunzel ou Robin Hood, e trocam conselhos sobre assuntos tipicamente femininos, como homens, beleza ou a devastação física e mental provocada pelas tarefas domésticas. Mas, principalmente, falam sobre seus sonhos e desejos, nas entrelinhas das cartas ou fora delas.

Esse desnudamento da alma feminina, dentro dos limites permitidos pelo século XVII, época da suposta correspondência, faz com que o livro pareça, muitas vezes, uma espécie de “Sex and the City” encantado. O resultado, hilário, pode ser sentido em trechos como o que Talia, ansiosa por companhia masculina, beija todos os sapos do brejo em busca de um príncipe encantado:

“(...) No afã de extrair um homem daquele brejo, eu me rendi ao poder do amor incondicional – disposta a beijar aqueles sapos sem resistência quanto ao aspecto físico destas criaturas. Não sei se fui promíscua. Sim, beijei muitos, mas apenas porque sabia ser a única forma de chegar até ele.”

Não pense o leitor, no entanto, que, como no seriado americano, vai encontrar algo mais “forte” do que isso. O século XVII era um bocadinho mais sutil do que o nosso. Mas vai encontrar um texto ágil, bem-bolado, feminino e, ao mesmo tempo, universal. Ao tratar dos desejos humanos contidos nesses contos já quase imortais, a autora acerta em cheio.

Em tempo: também foi publicada, anos depois, uma versão infanto-juvenil de Caixinha de Madeira, devidamente adaptada a este público, chamada O Livro das Cartas Encantadas – a correspondência das princesas. Não li esse livro, mas sua versão adulta é tão original e bem-humorada, que só posso supor que a infanto-juvenil acompanhe sua “irmã mais velha”. Dado o talento que Índigo também apresenta quando escreve para os mais novos, a garantia de uma boa leitura é mais certa do que um final feliz em contos de fada.

Correspondência Encantada - 1ª parte

Caixinha de Madeira
Editora Altana (2003)
Índigo

Em um tempo muito distante, quando o conceito atual de infância ainda nem engatinhava, eram contadas histórias que, mais tarde, seriam conhecidas como “contos de fadas”. Não que todas elas tivessem fadas; mas o fantástico era o elemento comum na tessitura de suas tramas. Objetos enfeitiçados, animais falantes, príncipes garbosos e princesas em apuros eram ingredientes indispensáveis de qualquer conto de fadas que se prezasse.

A audiência desses contos, assim como a das novelas de televisão, era composta por homens, mulheres, adolescentes e crianças, indistintamente. Deste público eclético, esperava-se que, além de diversão, tirasse daquelas narrativas lições de moral e conduta. Enfim, o que se esperava de um conto de fadas não era muito diferente do que esperamos hoje de uma boa telenovela moderna, que deve entreter sem, no entanto, perder de vista sua função social.

E, assim como nossos ancestrais se reuniam para acompanhar as peripécias dos arquétipos preferidos de sua imaginação também nós temos essa mania. Ou seria melhor dizer necessidade? Afinal, antes de serem registradas por escritores como os Irmãos Grimm, as histórias de fadas já eram contadas ao pé do fogo nas aldeias, castelos e mesmo em terras e tempos distantes. Há uma versão da história de Cinderela que já era contada na Antiga China. Aliás, há diversas versões dessa história. A mais recente dela vai ao ar por volta de oito da noite. Também às sete. E às seis da tarde. Parece que não conseguimos parar de contar e ouvir as mesmas histórias. Estamos sempre repetindo-as, mesmo que com pequenas variações.

Isso acontece porque narrativas como "Cinderela" são filhas diretas do imaginário coletivo. Em resumo, estão praticamente inscritas no DNA da humanidade. Só que com o passar do tempo, príncipes, princesas, bruxas e fadas deram lugar a personagens mais contemporâneos de sua audiência. Também buscaram elos com a realidade. A Gata Borralheira, por exemplo, passou a trabalhar na linha de produção de uma fábrica. Contos de fada e seus elementos fantásticos passaram a ser “coisa de criança”. Para reforçar essa condição, surgiu Walt Disney, com suas versões encantadoras, mas açucaradas, das histórias. E os adultos passaram a ver contos de fada somente como objeto de estudo da psicanálise ou da pedagogia.

Pois se alguém tem vontade de reencontrar gente como Branca de Neve, Bela Adormecida e Cinderela, em condições que não sejam essas, abra “Caixinha de Madeira”. Não se trata de uma volta à infância, pois o livro nada tem de infantil. No entanto, ao lê-lo, reencontramos personagens que são nossas velhas conhecidas, com a chance quase única de enxergar suas histórias por um viés não-disneyano e bastante original.

Gwenhyfar, uma das fadas do conto da Bela Adormecida (para ser mais específica, a autora do fabuloso contra-feitiço do sono de cem anos), decide deixar, em Veneza, após trezentos anos sob sua guarda, uma caixinha de madeira com a correspondência trocada entre as amigas de infância Branca de Neve, Bela Adormecida e Cinderela.

A fada teria selecionado as cartas mais significativas e datilografado suas melhores partes, pois ela já estava acostumada aos garranchos. O projeto gráfico do livro adere à proposta, imitando um texto datilografado com borrões de tinta. Isso ajuda a compor o clima de estarmos bisbilhotando papéis antigos e alheios.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Chocando histórias


A literatura infantil brasileira é pródiga em histórias de galinhas. Além de ser um animalzinho, por incrível que pareça, “ilustrogênico”, ou seja, fotogênico em ilustrações, seu modo de vida oferece à imaginação humana bastante material. A organização de um galinheiro, as relações entre as chocadeiras, o comando do galo no terreiro, a espera da ninhada e as diferenças entre os pintinhos já forneceram algumas das mais interessantes e divertidas páginas de nossa literatura infantil. Mudanças no galinheiro mudam o mundo por inteiro (Sylvia Orthof), O pintinho que nasceu quadrado (Regina Chamlian), que considero dois clássicos da nossa literatura infantil, estão nessa lista.

Clarice Lispector também tinha a sua história de galinha. Chama-se A Vida Íntima de Laura, sendo Laura a galinha do título. Depois de relatar a vida íntima da personagem, a escritora conclamava os leitores a contarem suas próprias histórias de galinha. E foi o que Cláudio Fragata, então editor da revista Recreio, fez em 2005, atendendo ao chamado de Clarice com muita graça.

Sua história de galinha chama-se O voo supersônico da galinha Galatéia, uma história de galinha leve e despretensiosa, escrita em uma linguagem simpática e direta. Galatéia começa o livro no papel de “galinha do vizinho”, e tem sua história contada pelo menino da casa ao lado a um de seus amigos. Sem muitas delongas, o leitor é apresentado à face aventureira de Galatéia, a galinha astronauta que parte para a Lua em busca do mais fabuloso galo já concebido pela imaginação galinácea. E, apesar das peripécias da protagonista em busca do amor parecerem penosas, com perdão do trocadilho, quem canta de galo no final é a felicidade.

E você? Já criou sua própria história de galinha?