domingo, 8 de junho de 2008

Izini no País das Maravilhas


O lápis muito louco do Rei Branco
Editora Biruta (2005)
Carlos Alberto Dória
Ilustrações de Rubens Matuck
(adaptação livre de um poema de Lewis Carroll)


Eu tinha uma tia-avó muito louca. Não no sentido próprio da loucura, mas na acepção moderninha da palavra. Ela aprontava todas, livre como o vento, nada no bolso ou nas mãos, com exceção do coração. Sobre ela, há histórias curiosas que passam adiante, de geração a geração, transformando-a em uma pequena lenda familiar. Como, por exemplo, a história de que, ainda menina, teria cuidado de um homem com perna machucada que pedia esmolas na rua. Ao ficar bom, o homem teria batido na casa de minha bisavó viúva, quatro filhos para criar, com uma cesta de verduras e legumes frescos. Barbeado, limpo e com emprego, ele vinha agradecer à menina que o havia tirado da sarjeta. A cesta ficou; assim como a amarga marca de uma sova no traseiro de Izini.

O irmão era José Jorge, o Zuza. As moças receberam nomes árabes ou de uso corrente na região da Síria e do Líbano, de inspiração francesa: Odete, Izini, Nadir. Nadir, a caçula, é minha avó.

Izini era chamada de Geni, tia Geni, que todos os dias esperava pelo zepelim e recebia pedras. Teve a virgindade injustamente posta à prova, foi-se embora com o circo, conheceu Dercy Gonçalves, fez ponta em chanchada da Atlântida, conheceu Getúlio no circuito dos cassinos, vendeu sabão e badulaques de porta em porta, botou cartas até para políticos. Carrões com placa de Brasília paravam na porta de sua casa, só para ler a sorte. Também falava palavrões, soltava ladrões de galinha da cadeia, socorria vítimas de acidente em sua casa. Casou, mas não teve filhos. O que não impedia que o Cosme e Damião em sua casa fosse uma festa. Vinha moleque correndo, de longe, para receber os doces separados carinhosamente por ela.

Para os irmãos, Izini parecia a rainha de um país dos horrores, sempre prestes a falar ou fazer algo “errado”. Para nós, sobrinhos-netos, ela era uma fonte certa e inesgotável de graça e surpresas, como uma cartola de mágico. Foi ela quem me deu o meu primeiro “Alice no País das Maravilhas”, um dos únicos livros da minha infância que resistiu às intempéries do tempo. Traduzido por Monteiro Lobato, capa dura da Brasiliense, ilustrações em preto e branco que eu tratei de colorir, Alice é um dos meus tesouros. Nunca compreendi o livro inteiramente, assim como nunca compreendi Izini. Ao menos, não enquanto ela vivia. Eu apenas me deixava envolver pela leitura, como Izini se deixava envolver pela vida, e seguia adiante, tropeçando pelas páginas.

O lápis muito louco do Rei Branco, feito em cima de um poema que Alice teria encontrado na casa do Rei Branco em sua segunda aventura através do espelho, foi feito para ser sentido, e não compreendido. As palavras e sons evocam a umidade das florestas pré-históricas, quando lagartos gigantes e pesados mastigavam tudo o que viam na frente. As sensações são acentuadas pelas belíssimas ilustrações de Rubens Matuck, que alterna as cenas da floresta com um certo psicodelismo visual.
Hoje em dia, qualquer criança de três anos conhece a escalação do time dos dinossauros de cor. Mas, naquela época, a pré-história do sr. Charles Lutwidge Dodgson, o professor de matemática que se tornou Lewis Carroll, possivelmente contava apenas com as descobertas de outro Charles, o Darwin, para inspirá-la.

O Jaguadarte, o poema do Rei Branco, foi traduzido para vários idiomas. E, cada vez menos, soube-se o que Alice, de fato, leu. Augusto de Campos fez a tradução para o português. E quase não dá para entender nada.

A adaptação de Carlos Alberto Dória para a Editora Biruta baseou-se em todas as traduções existentes – e, segundo o autor, isso torna o poema ainda menos compreensível. Melhor assim, pois, dessa forma, diz ele, mais vale entender qualquer coisa, descobrindo que o que não faz sentido em uma língua, pode não fazer sentido de forma diferente em outra língua.

De qualquer forma, mesmo parecendo não fazer sentido, é uma experiência única a leitura guiada mais pelo sensorial do que pelo racional, assim como foi uma experiência única para mim conviver com tia Geni. Hoje, pergunto aos meus botões por que Izini teria me dado um livro tão significativo como Alice no País das Maravilhas, escolha que tanto revelava a respeito dela própria, mas estranha, diante da suspeita de que ela jamais o leu. Na verdade, desconfio que ela o teria escolhido apenas por ter uma Alice como protagonista. Minha bisavó, a quem ela amou até o fim, a ponto de viver apenas mais dois anos após a sua morte, chamava-se Alice. Assim como a Alice de Carroll, ela embarcou ainda menina, em uma viagem que a trouxe do Líbano para o país, senão das maravilhas, ao menos do seu destino. Diante de uma leitura afetiva dessas, não é preciso explicar nada. Apenas sentir.