quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Um grande roteiro

As pessoas gostam de viajar para conhecer lugares distantes, e ter contato com pessoas e culturas diversas, certo? Nem sempre. O sistemático Phileas Fogg daria toda a sua fortuna para ficar em casa na Saville Row, em Londres, seguindo sua rotina, sem nunca topar com lugares, pessoas ou uma cultura que não fossem estritamente britânicos, londrinos e conhecidos. No entanto, foi esse mesmo personagem, protagonista de um dos mais deliciosos livros do mestre Júlio Verne, que arriscou toda a sua fortuna para dar a volta ao mundo em 80 dias, em um tempo em que não havia à disposição dos viajantes veículos como aviões, carros ou trens de alta velocidade. O ano dessa aventura era 1872. O meu ano de conhecer aquele que se tornaria um dos mais famosos roteiros do mundo, foi 1979.


Nesse ano, ainda criança, fui apresentada a uma das mais fascinantes viagens que um habitante do planeta Terra pode fazer: dar a volta no globo. Ainda hoje, sonho com isso (para quem não sabe, existem passagens aéreas de volta ao mundo – e seu preço é bem “terrestre”). Phileas Fogg e Júlio Verne despertaram em mim não apenas o desejo de conhecer lugares distantes e pessoas e culturas diferentes, mas, também, o gosto pelo planejamento das viagens e o domínio dos mecanismos que fazem com que elas transformem em desafios. Isso inclui fazer, muitas vezes, sozinha, o que é fácil para os que estão imersos naquela realidade cotidiana, mas não para você. Trens, aviões, farmácias, bancos, mercados, multas, roubos, ficar perdida, encontrar os lugares (com GPS e sem ele)...

Cada viagem minha tem sido uma pequena aventura, tutelada por ninguém. A sensação de sucesso final vem do fascínio de errar e acertar, além, é claro, do acúmulo e eventual uso das minhas experiências anteriores e da troca de conhecimentos e talentos com outros viajantes e companheiros de jornada. Com isso, já conheci diversos lugares do mundo sem estar presa aos horários, convenções e falta de desafios das excursões. Aliás, muitas delas propõem, sim, um desafio: ver o maior número de cidades, monumentos e pontos de interesse no menor número de dias possível, como se os viajantes estivessem, a exemplo de Phileas Fogg, apostando toda sua fortuna nisso.

Bem, mesmo com o personagem sendo quase um exemplo de viajante das modernas excursões, dada a sua pressa em passar pelos lugares, sua façanha permaneceu gravada em mim. Da mesma forma que Fogg, adoro minha casa e minha rotina, mas viajar é algo que me faz tirar os pés do chão, assim como o fizeram alguns episódios narrados no livro de Verne: o voo do balão, o uso do elefante e o barco a vapor queimado até o esqueleto por Fogg e seu valete francês Passepartout. É o valete, aliás, que garante alguns dos melhores momentos da trama. Seu ponto de vista latino dos acontecimentos e personagens britânicos já valeria a sua inclusão no livro. Mas o valete, cujo nome quer dizer, literalmente, “passa-por-tudo”, é aquele que passará, literalmente, por tudo na trama, desde ser deixado para trás até tomar o patrão por um ladrão de bancos e entregá-lo ao detetive que o persegue insanamente desde a partida. Só temos, inclusive, acesso às emoções e conflitos de Passepartout. O interior de Fogg é interditado aos outros personagens e também ao leitor, com exceção de um breve momento com Mrs. Auda, a viúva hindu que lhe salva a alma aos 45 do segundo tempo. São, portanto, as emoções, intervenções e desventuras de Passepartout que mudam os rumos da história até o grand finale, possível apenas por um capricho da escolha do roteiro e de um afortunado resgate na Índia.


A volta ao mundo em 80 dias pode ser vista, em síntese, como uma história sobre a honra. Ela está presente na aposta de Fogg, feita apenas sem nenhum outro propósito que não o de provar seu ponto de vista e cumprir sua palavra; está na persistência do detetive Fix, que dá a volta ao mundo perseguindo o que acreditava ser a justiça; está em Passepartout e sua lealdade e disponibilidade para com seu patrão, mesmo nos momentos de conflito; está no salvamento de uma mulher condenada à morte, mesmo que isso pudesse custar o sucesso da empreitada.

A honra está presente em todas as páginas do livro de Verne, mas, acima de tudo, A Volta ao Mundo em 80 Dias é uma aventura cativante. Pode não ser uma espécie de visão do futuro, como Vinte mil léguas submarinas. Pelo contrário, em termos de recursos tecnológicos, ela é um retrato do passado, presa à sua época. Mas viajar por nosso planeta e mudar rumos ao sabor dos acontecimentos, ainda é, hoje em dia, um desafio e uma façanha absolutamente possível de ser vivida por nós. Conhecer lugares distantes e utilizar os recursos disponíveis para sobreviver nesses locais termina por ser uma pequena aventura à disposição de todos. Daí, talvez, ainda existir o fascínio por um livro tão “ultrapassado”. Eu mesma já me vi cogitando tomar um daqueles “riquixás” novaiorquinos para voltar ao hotel em uma noite gelada. Ou argumentando com policiais tchecos, de madrugada, para que não me multassem, pois eu não tinha dinheiro. Já pulei carnaval em porão de bar novaiorquino, já dancei no subsolo de uma igreja desativada em Paris. Já me joguei dentro de trem suíço ou negociei em húngaro, sem falar uma palavra dessa língua. Já andei em um veleiro na Grécia, tomando banho de torneira e só descendo à terra de bote salva-vidas, de dia ou de noite. Já dormi com mais de trinta pessoas em uma casa apertada de Conceição da Barra, no Espírito Santo, tomando banho de cano no quintal e comendo miojo feito na varanda. Já andei de trem por baixo do Canal da Mancha, já voei de turbo-hélice. Já fiz e já pensei em fazer um monte de coisas diferentes quando estou viajando. Algumas podem até soarem tolas a viajantes muito mais cheios de histórias radicais para contar do que eu, repletas de escaladas, saltos, voos, corridas e mergulhos. Mas essas pequenas aventuras são as imensas voltas ao mundo para mim, que começaram com a leitura de livros como o de Júlio Verne.


Em tempo: eu li, quando criança, um exemplar da Coleção Grandes Aventuras, da Editora Abril, comprado nas bancas. Já tive, depois desse livro, diversas edições de A Volta ao Mundo em 80 Dias. Algumas, com belíssimas ilustrações. Mas nenhuma delas teve, para mim, o encanto e o frescor daquele texto, feito sob medida para os jovens e para a imaginação de meninas de nove anos que gostam de sonhar com aventuras.

domingo, 19 de setembro de 2010

Abrindo as portas de Portugal

Coleção O Clube das Chaves


Maria Teresa Maia Gozalez
Maria do Rosário Pedreira
Capa e ilustrações: Luís Anglin

Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo

As crianças d’além mar gostam tanto de histórias de detetive quanto as daqui. Pelo menos, é esta a conclusão que se chega percorrendo as prateleiras portuguesas em busca de títulos infanto-juvenis.

Há alguns anos, em uma visita à Lisboa, trouxe alguns desses infanto-juvenis na mala. Gostei de todos, mas os meus preferidos são os simpáticos volumes de O Clube das Chaves, cujo primeiro, O Clube das Chaves entra em acção, foi publicado em 1990. O sucesso foi tão grande que inspirou mais de uma dúzia de aventuras da mesma série. Infelizmente, só pude trazer cinco delas, escolhidas aleatoriamente, comigo. Mas foi o suficiente para me tornar uma fã.

Todas as histórias têm em comum a preocupação de discutir assuntos da atualidade de uma forma leve e apresentar um pouco de Portugal, de suas cidades e algumas de suas tradições, à garotada. O resultado é que em 2000 (ano da edição comprada por mim), a série O Clube das Chaves já contava com mais de 750.000 exemplares vendidos. Um recorde, mesmo para um país de leitores. Afinal, Portugal conta com menos de um décimo da população brasileira, algo por volta de treze milhões de habitantes. Lembrando que a faixa etária a qual a coleção se destina está em torno dos dez anos de idade, é possível dizer que praticamente todos os portuguesinhos conhecem as aventuras escritas a quatro mãos por Maria Teresa Maia Gonzalez e Maria do Rosário Pedreira. A formação de educadoras das autoras transparece em todas as linhas, sem jamais, no entanto, aborrecer os leitores. O Clube das Chaves também virou série de televisão, o que só deve ter contribuído para aumentar seu sucesso.

A história é muito simples e interessante. Em seu décimo terceiro aniversário, Pedro recebe um curioso presente deixado por seu avô, recentemente falecido. Trata-se de uma caixa com diversas chaves numeradas, de todos os tamanhos e formatos. Todas elas têm etiquetas penduradas, onde estão pequenos enigmas, que deverão ser desvendados por Pedro e quem mais ele desejar. Este jogo levará o garoto a convidar sua irmã Anica, a prima Guida e o amigo Frederico para fundarem o Clube das Chaves e, em nome dele, percorrerem diversos cantos de Lisboa e do resto de Portugal, desvendando os mistérios propostos pelo avô.

As aventuras dos quatro são acompanhadas pelas histórias do resto da família deles. Pais, mães, tios, primos, todos eles têm participação na trama, geralmente ilustrando situações do cotidiano como namoros, a busca pelo primeiro emprego, pequenas rusgas de casais ou separações, por exemplo. Além disso, o dia-a-dia dos personagens tem tanto valor quanto os enigmas que deverão ser desvendados por eles. Eles se apaixonam, vão a festas, têm lições de dança ou de música, participam de campeonatos esportivos e fazem novos amigos, inclusive brasileiros.

Para os jovens portugueses, O Clube das Chaves é uma rara combinação equilibrada de diversão, cultura e educação. Para nós, brasileiros, é uma excelente forma de conhecer um pouco mais dos nossos irmãos portugueses. Suas cidades, suas tradições, hábitos, costumes, maneira de falar, o que pensam do Brasil, dos brasileiros, do nosso sotaque (a ortografia que tenta imitar o jeito de falar dos personagens brasileiros é divertidíssima), de nossas telenovelas...

É engraçado nos ver pelos olhos dos outros. Principalmente através dos olhos de quem está ajudando a formar toda uma geração de portugueses, povo que representa a pedra fundamental da formação da nossa sociedade. E isso torna livros como os da série O Clube das Chaves ainda mais interessantes para nós.

Para entrar em contato: http://www.editorialverbo.pt/

domingo, 11 de julho de 2010

O Gentil Ladrão de Leitores

A Agulha Oca (Nova Fronteira, 1980)
Coleção Arsène Lupin (nº 5)
Maurice Leblanc
Tradução de Maria Cesário Alvim

Eu posso ter roubado do leitor, como o cavalheiresco ladrão que protagoniza essa série, a chance de encontrar o livro desta resenha nas prateleiras das livrarias. Digo isso porque talvez seja mais fácil achá-lo nas prateleiras dos sebos. Ou, em última instância, nas prateleiras da casa dos seus pais, tios ou avós. Mas o prazer de procurar por livros como A Agulha Oca nas estantes da cidade revela-se comparável apenas ao prazer que Arsène Lupin tinha de adquirir as joias que subtraía, com muita habilidade, dos ricos.

Está bem. As soluções, às vezes, careciam de uma maior lógica ou engenhosidade. Diante dos romances atuais, repletos de detalhes técnicos destinados a dar mais “veracidade” às tramas, as mirabolantes aventuras de Lupin nos deixam com a sensação de estarmos diante das histórias estreladas pelo mágico Mandrake. No entanto, criado em 1905 pelo francês Maurice Leblanc, Arsène Lupin, le gentleman cambriouler, tem aval de sobra para um lugar de honra na galeria dos livros policiais. Em 2005, chegou ao seu centenário com direito até mesmo a comemorações na França. Além do mais, ficção não tem a obrigação de ser tese de doutorado, manual de instruções ou apostila de física. A proposta era entreter; e isso Leblanc conseguia, transportando seus leitores, com muito charme, a uma França da virada do século XX.

Lupin nasceu a pedido da revista francesa Je sais tout, como uma resposta irreverente ao britânico sucesso de Sherlock Holmes. Leblanc chegou mesmo a satirizar a criação imortal de Conan Doyle, criando Herlock Sholmes, um detetive tolo que sempre saía perdendo nos confrontos com o ladrão de casaca. Nada que abalasse a popularidade de Holmes, um ícone da literatura mundial. Mas Leblanc deve ter se divertido um bocado escrevendo seus livros, assim como seus compatriotas, que passaram a acompanhar com avidez as aventuras criadas por ele.

O ladrão francês era anárquico, divertido, sedutor. E o fato de não estar do lado da lei só aumentava seu charme, fazendo dele um dos primeiros anti-heróis dos romances policiais. Lembro-me de que ao ler as aventuras de Arsène Lupin entre a infância e a adolescência, eu me perdia, de vez em quando, diante do disfarce adotado pelo gentleman cambriouler em determinada aventura. Como um camaleão, o personagem podia estar em qualquer lugar das páginas, assumindo uma identidade que fazia com que ele se confundisse com o ambiente do cenário de seu próximo roubo. Isso podia até embaralhar o leitor, mas era bastante divertido tentar adivinhar o personagem na pele de um conde ou de um milionário.

O coroamento definitivo de Lupin como o maior ladrão de todos os tempos se dá em A Agulha Oca. A trama se passa na Normandia, região onde nasceu o autor da série, e envolve um segredo transmitido, há vinte séculos, pelos governantes do que hoje é a França... epa, mais não posso dizer. Muito antes de Dan Brown, Leblanc já propunha enigmas criptográficos e caças ao tesouro. E não sou eu que vou estragar o prazer do leitor que ainda não foi apresentado a essa joia francesa. Também não desejo reavivar demais a memória de quem leu essa história há muito tempo. Procurem o livro, levem-no ao sol para tirar o mofo das páginas amareladas e mergulhem na leitura. Ela é meio folhetinesca e, às vezes, não flui como estamos acostumados. Mas, fazendo algumas concessões à linguagem e ao estilo do autor, o leitor pode se divertir um bocado diante de um dos grandes clássicos do gênero. O famoso ladrão de casaca passou dos cem anos com fôlego para ainda roubar, com muita classe, fãs de outros livros policiais.

Outros títulos da Coleção Arsène Lupin editados no Brasil pela Nova Fronteira:

813
Arsène Lupin, Ladrão de Casaca
O Paiol de Pólvora
A Rolha de Cristal
O Segredo de Eunerville
A Condessa de Cagliostro
A vingança da Cagliostro
Arsène Lupin contra Herlock Sholmes
As confidências de Arsène Lupin
As oito pancadas do relógio
O estilhaço de granada
Os dentes do tigre

Site:

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Correspondência Encantada - 2ª parte

Tanto as cartas quanto as intervenções da fada são divertidíssimas. Por diversas vezes, me peguei rindo das cenas e das idéias estapafúrdias que pareciam assolar a mente das jovens princesas. No entanto, a autora resiste bravamente à sátira fácil. Com sutileza, ela apresenta uma correspondência trocada entre mulheres. Especiais, encantadas, de outros tempos. O que for. Mas sempre mulheres.

As personalidades das princesas são bem diferentes, o que também garante grande parte da graça, já que o estilo das cartas segue, com habilidade, suas características. Talia (que seria o nome de batismo da Bela Adormecida) é ansiosa e cheia de idéias mirabolantes. Annette (nome verdadeiro de Cinderela) não nasceu nobre e conhece as agruras da vida plebéia, o que se reflete em seus discursos práticos e, de vez em quando, até politizados. Branca de Neve (como seu nome de batismo já era esquisito o suficiente, não precisou de outro) é a mais delicada e sonhadora das três, mas prova sua força na hora certa, como muitas vezes acontece com as mulheres de carinha de anjo e pensamentos quase infantis.

É divertidíssimo e, ao mesmo tempo, estranhamente delicado, ouvir as vozes das princesas narrando suas próprias histórias. Enquanto contam umas para as outras seus cotidianos e desventuras, tecem comentários sobre outros personagens, como Rapunzel ou Robin Hood, e trocam conselhos sobre assuntos tipicamente femininos, como homens, beleza ou a devastação física e mental provocada pelas tarefas domésticas. Mas, principalmente, falam sobre seus sonhos e desejos, nas entrelinhas das cartas ou fora delas.

Esse desnudamento da alma feminina, dentro dos limites permitidos pelo século XVII, época da suposta correspondência, faz com que o livro pareça, muitas vezes, uma espécie de “Sex and the City” encantado. O resultado, hilário, pode ser sentido em trechos como o que Talia, ansiosa por companhia masculina, beija todos os sapos do brejo em busca de um príncipe encantado:

“(...) No afã de extrair um homem daquele brejo, eu me rendi ao poder do amor incondicional – disposta a beijar aqueles sapos sem resistência quanto ao aspecto físico destas criaturas. Não sei se fui promíscua. Sim, beijei muitos, mas apenas porque sabia ser a única forma de chegar até ele.”

Não pense o leitor, no entanto, que, como no seriado americano, vai encontrar algo mais “forte” do que isso. O século XVII era um bocadinho mais sutil do que o nosso. Mas vai encontrar um texto ágil, bem-bolado, feminino e, ao mesmo tempo, universal. Ao tratar dos desejos humanos contidos nesses contos já quase imortais, a autora acerta em cheio.

Em tempo: também foi publicada, anos depois, uma versão infanto-juvenil de Caixinha de Madeira, devidamente adaptada a este público, chamada O Livro das Cartas Encantadas – a correspondência das princesas. Não li esse livro, mas sua versão adulta é tão original e bem-humorada, que só posso supor que a infanto-juvenil acompanhe sua “irmã mais velha”. Dado o talento que Índigo também apresenta quando escreve para os mais novos, a garantia de uma boa leitura é mais certa do que um final feliz em contos de fada.

Correspondência Encantada - 1ª parte

Caixinha de Madeira
Editora Altana (2003)
Índigo

Em um tempo muito distante, quando o conceito atual de infância ainda nem engatinhava, eram contadas histórias que, mais tarde, seriam conhecidas como “contos de fadas”. Não que todas elas tivessem fadas; mas o fantástico era o elemento comum na tessitura de suas tramas. Objetos enfeitiçados, animais falantes, príncipes garbosos e princesas em apuros eram ingredientes indispensáveis de qualquer conto de fadas que se prezasse.

A audiência desses contos, assim como a das novelas de televisão, era composta por homens, mulheres, adolescentes e crianças, indistintamente. Deste público eclético, esperava-se que, além de diversão, tirasse daquelas narrativas lições de moral e conduta. Enfim, o que se esperava de um conto de fadas não era muito diferente do que esperamos hoje de uma boa telenovela moderna, que deve entreter sem, no entanto, perder de vista sua função social.

E, assim como nossos ancestrais se reuniam para acompanhar as peripécias dos arquétipos preferidos de sua imaginação também nós temos essa mania. Ou seria melhor dizer necessidade? Afinal, antes de serem registradas por escritores como os Irmãos Grimm, as histórias de fadas já eram contadas ao pé do fogo nas aldeias, castelos e mesmo em terras e tempos distantes. Há uma versão da história de Cinderela que já era contada na Antiga China. Aliás, há diversas versões dessa história. A mais recente dela vai ao ar por volta de oito da noite. Também às sete. E às seis da tarde. Parece que não conseguimos parar de contar e ouvir as mesmas histórias. Estamos sempre repetindo-as, mesmo que com pequenas variações.

Isso acontece porque narrativas como "Cinderela" são filhas diretas do imaginário coletivo. Em resumo, estão praticamente inscritas no DNA da humanidade. Só que com o passar do tempo, príncipes, princesas, bruxas e fadas deram lugar a personagens mais contemporâneos de sua audiência. Também buscaram elos com a realidade. A Gata Borralheira, por exemplo, passou a trabalhar na linha de produção de uma fábrica. Contos de fada e seus elementos fantásticos passaram a ser “coisa de criança”. Para reforçar essa condição, surgiu Walt Disney, com suas versões encantadoras, mas açucaradas, das histórias. E os adultos passaram a ver contos de fada somente como objeto de estudo da psicanálise ou da pedagogia.

Pois se alguém tem vontade de reencontrar gente como Branca de Neve, Bela Adormecida e Cinderela, em condições que não sejam essas, abra “Caixinha de Madeira”. Não se trata de uma volta à infância, pois o livro nada tem de infantil. No entanto, ao lê-lo, reencontramos personagens que são nossas velhas conhecidas, com a chance quase única de enxergar suas histórias por um viés não-disneyano e bastante original.

Gwenhyfar, uma das fadas do conto da Bela Adormecida (para ser mais específica, a autora do fabuloso contra-feitiço do sono de cem anos), decide deixar, em Veneza, após trezentos anos sob sua guarda, uma caixinha de madeira com a correspondência trocada entre as amigas de infância Branca de Neve, Bela Adormecida e Cinderela.

A fada teria selecionado as cartas mais significativas e datilografado suas melhores partes, pois ela já estava acostumada aos garranchos. O projeto gráfico do livro adere à proposta, imitando um texto datilografado com borrões de tinta. Isso ajuda a compor o clima de estarmos bisbilhotando papéis antigos e alheios.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Chocando histórias


A literatura infantil brasileira é pródiga em histórias de galinhas. Além de ser um animalzinho, por incrível que pareça, “ilustrogênico”, ou seja, fotogênico em ilustrações, seu modo de vida oferece à imaginação humana bastante material. A organização de um galinheiro, as relações entre as chocadeiras, o comando do galo no terreiro, a espera da ninhada e as diferenças entre os pintinhos já forneceram algumas das mais interessantes e divertidas páginas de nossa literatura infantil. Mudanças no galinheiro mudam o mundo por inteiro (Sylvia Orthof), O pintinho que nasceu quadrado (Regina Chamlian), que considero dois clássicos da nossa literatura infantil, estão nessa lista.

Clarice Lispector também tinha a sua história de galinha. Chama-se A Vida Íntima de Laura, sendo Laura a galinha do título. Depois de relatar a vida íntima da personagem, a escritora conclamava os leitores a contarem suas próprias histórias de galinha. E foi o que Cláudio Fragata, então editor da revista Recreio, fez em 2005, atendendo ao chamado de Clarice com muita graça.

Sua história de galinha chama-se O voo supersônico da galinha Galatéia, uma história de galinha leve e despretensiosa, escrita em uma linguagem simpática e direta. Galatéia começa o livro no papel de “galinha do vizinho”, e tem sua história contada pelo menino da casa ao lado a um de seus amigos. Sem muitas delongas, o leitor é apresentado à face aventureira de Galatéia, a galinha astronauta que parte para a Lua em busca do mais fabuloso galo já concebido pela imaginação galinácea. E, apesar das peripécias da protagonista em busca do amor parecerem penosas, com perdão do trocadilho, quem canta de galo no final é a felicidade.

E você? Já criou sua própria história de galinha?


terça-feira, 16 de março de 2010

Xadrez em dois tempos

O Enigma do Oito
Best-Seller (1988)
Katherine Neville
Tradução de Elizabeth e Djalmir Mello

Quem leu, leu. Quem não leu, vai ter que procurar em um sebo esse cult envolvendo um poderoso jogo de xadrez que teria pertencido a Carlos Magno.

Quando ainda mal se falava em thrillers envolvendo personagens históricos, a norte-americana Katherine Neville escreveu O Enigma do Oito. Na época, o livro não alcançou, no Brasil, o mesmo sucesso que obteve lá fora. Muitos anos depois de sua publicação, The Eight, título original do livro, ainda pode ser encontrado, com razoável destaque, nas prateleiras de grandes livrarias estrangeiras. É um cult. Mas, aqui no Brasil, quem quiser lê-lo, terá que buscar em sebos.

A trama de O Enigma do Oito se passa em dois tempos: o período pós-revolucionário francês e a década de 70. Ambos esbanjam ritmo, cenários históricos como a Rússia Imperial, ou ainda exóticos, como a Argélia. Seus inúmeros personagens foram construídos com competência e são envolventes.

Em um convento no interior da França, prestes a ser invadido pelos revolucionários, freiras e noviças recebem da madre superiora uma estranha incumbência: guardar, em segurança, peças de um jogo de xadrez que teria pertencido a Carlos Magno. Cada qual recebe uma valiosa figura, que deveria proteger com a própria vida, se necessário.

É na saída do convento, para a violência de uma França em ebulição que a jovem e, de início, apagada Mireille, tentará sobreviver e ser bem-sucedida em sua missão. O que ela não sabe é que se tornou uma peça “viva” em um jogo perigoso, que também será vivido, no século XX, por Catherine Velis, uma analista de sistemas ligada à história do jogo misterioso. Levada ao jogo por um campeão russo de xadrez, a moça vê-se enredada em uma trama que fornece a chave para uma cobiçada fórmula.

Os personagens, identificados com as figuras do xadrez, se enfrentam por um segredo milenar, oculto nas peças que ambos os lados, preto e branco, opostos entre si, tentarão encontrar e reunir. E não serão Mireille e Catherine as únicas jogadoras dessa partida mortal. Figuras históricas como Napoleão, Talleyrand, Casanova, Voltaire, Rousseau, Robespierre e Catarina, a Grande, fazem parte da trama, desempenhando diversos e, muitas vezes, decisivos papéis em um enigma engendrado de forma inteligente e empolgante.

É uma pena que, na época, O Enigma do Oito não tenha emplacado no Brasil com a mesma força de seu país de origem. Tempos depois, embalada pelo sucesso de The Eight, a autora escreveu The Magic Circle, uma história inferior a O Enigma do Oito em matéria de trama, mas também hábil em inserir personagens históricos em uma aventura cheia de suspense e ação. Ambos têm sua classe e sabem prender um leitor que esteja em busca de uma diversão inteligente e elegante.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A colecionadora de histórias extraordinárias

El coleccionista de relojes extraordinarios
Ediciones SM (2004)
Laura Gallego García
El Barco de Vapor

A coleção Barco a Vapor é considerada a maior do mundo dedicada à literatura infantil e juvenil. Um concurso literário para textos inéditos, com o mesmo nome da coleção, foi lançado na Espanha, há mais de trinta anos, para incentivar a leitura naquele país, tornando-se também, um dos maiores do mundo em sua categoria. Os textos premiados são publicados e passam a fazer parte da coleção Barco a Vapor. Tanto ela quanto o prêmio costumam ser lançados em todos os países nos quais as Edições SM abre uma filial, como Argentina, Chile, Colômbia, México, Peru e República Dominicana. O Brasil é o único país no qual a editora se faz presente cujo idioma oficial não é o espanhol.

Por ter vencido a edição de 2006 do Prêmio Barco a Vapor, no Brasil, com o livro Era mais uma vez outra vez, um dos meus hobbies, ao viajar para um país de língua espanhola é adquirir alguns títulos da coleção. Os premiados em seus países são aqueles que mais em chamam a atenção, e costumo trazer comigo os que não foram publicados em português. Mas há títulos, autores e temáticas que me atraem independente do selo do prêmio na capa. Laura Gallego García é um desses casos.

Laura já venceu duas vezes o Prêmio Barco a Vapor em seu país. Em 1998, com Finis Mundi, traduzido e publicado no Brasil; e, em 2002, com La Leyenda del Rey Errante. Apesar de jovem, escreve teses sobre livros de cavalaria e é fã de novelas do gênero fantástico, com predileção por autores como Michael Ende, autor de A História Sem Fim.

Em uma viagem à Espanha, eu trouxe El coleccionista de relojes extraordinarios, uma história que faz parte do gênero favorito de Laura ao operar com realidades distintas, personagens misteriosos e, sobretudo, com um clima soturno, onde se discutem questões como a morte e o tempo.

Um folheto turístico traz, entre suas dicas de visitação, um pequeno museu de relógios antigos, situado no coração de uma chamada Cidade Antiga. É para lá que se dirigem, ao final de uma tarde escaldante, a família Hadley: Jonathan, um garoto de seus quinze anos, seu pai e sua madrasta.

Ao chegarem ao endereço indicado, os três descobrem que o museu não existe mais, mas que o dono da casa, um misterioso marquês, lhes mostrará sua coleção de relógios extraordinários. O que seria uma cortesia revela-se uma armadilha quando, sucumbindo à curiosidade, como Eva, Pandora ou a mulher de Barba Azul, a madrasta de Jonathan tem sua alma aprisionada por um antigo relógio chinês. Para salvá-la, Jonathan Hadley deverá buscar pelas ruas da cidade, um outro relógio, ainda mais poderoso, até o amanhecer.

O livro trata de uma busca pelo tempo e contra o tempo, na qual Jonathan enfrentará perigos, tal qual um cavaleiro andante, e se deparará com personagens e cenários estranhos pertencentes a uma outra realidade, como a Alice de Carroll ou o principezinho de Exupéry.

Ao final, como era de se esperar, a discussão sobre o preço da imortalidade, ou que seria a imortalidade para os seres humanos, está presente e nem chega a ser original. Mas o estilo da Laura, que poderá lembrar aos leitores brasileiros, em diversos momentos, Carlos Ruiz Zafón, de A Sombra do Vento, é uma delícia. Ele aproxima-se do clima meio Edgar Allan Poe à espanhola que seu conterrâneo desenvolve com destreza, especialmente em seus livros infanto-juvenis, ainda não publicados por aqui.

No entanto, Zafón, e mesmo Poe, não aparecem na sua lista de autores prediletos. Entre eles, estão alguns nomes da literatura fantástica como Tolkien, Terry Pratchett, R. A. Salvatore, Neil Gaiman, George R. R. Martin, J.K. Rowling e Eoin Colfer. E na lista de livros preferidos, além do já citado A História Sem Fim, está O Alquimista, de Paulo Coelho. As fontes de Laura são muitas e variadas, passando por obras-primas da literatura espanhola e universal, como Dom Quixote e muitas referências medievais, sua especialidade: sua tese de doutorado trata de um livro de cavalaria publicado em 1579: Belianís de Grecia, de Jerónimo Fernández.

Eu, particularmente, sou fã da Laura Gallego García três vezes: pelos temas escolhidos, pela maneira fluente como os desenvolve e por ter levado, por duas vezes, o disputado Prêmio Barco a Vapor para casa, feito difícil. E ela nem levou tanto tempo assim para repetir a façanha.

Para saber mais sobre a autora, visite:



Parece ilustração, mas é fan art, arte produzida por fãs, disponível no site da autora.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Perfil Literário - Caio Riter

Em 2006, o escritor gaúcho Caio Riter deu uma entrevista para o site Armazém Literário. Aqui está um trecho dessa entrevista, na qual foi feito um perfil literário do escritor:

Um livro de contos: Contos de Eva Luna, de Isabel Allende

Um romance: Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar

Um livro que gostaria de ter escrito: Aura, de Carlos Fuentes

Personagem favorito da literatura universal: Ema Bovary

Um autor: Lygia Fagundes Telles

Um livro que o professor Caio recomenda na universidade: Medeia, de Sêneca.

Um livro que o professor Caio recomenda no colégio: Letras Finais, de Luís Dill

Um livro que o pai Caio mais gostou de ler para as filhas: Maria vai com as outras, de Sylvia Orthoff

Um livro que o amigo Caio mais gosta de dar de presente: Aura, de Carlos Fuentes.

Um livro infanto-juvenil inesquecível: Corda bamba, de Lygia Bojunga

Um autor infanto-juvenil que marcou: Lobato, por seu As caçadas de Pedrinho

Personagem favorito da literatura infanto-juvenil: Alice

Para a garotada ler na escola: Territórios Perdidos, de O. Sória Machado

Para a garotada ler nas férias: Qualquer um do Georges Simenon

Para a garotada ter na estante: Alice no país das maravilhas, de Lewis Carrol

Para qualquer um ter no coração: Ou isto ou aquilo, da Cecília Meireles