quinta-feira, 15 de maio de 2008

Desafiando o tempo

Finis Mundi
Edições SM (2004)
Laura Gallego García
Tradução: Célia Regina R. de Lima

Se um ano que termina traz inúmeras reflexões e resoluções, que dirá o fim de um século. Ou de um milênio. Há alguns anos, passamos por essa curiosa experiência, na passagem simultânea do século XX para o XXI, e do segundo para o terceiro milênio da Era Cristã. O avanço da ciência e da razão fez dessa passagem um acontecimento bastante tranqüilo, apesar de sua ampla exploração pela mídia. Alguns preferiram romper o milênio nos locais mais mirabolantes ou charmosos do globo; outros optaram pela companhia da família e dos amigos, como se assim fosse possível desafiar o tempo e eternizá-los ao seu lado. Se nós, homens e mulheres do terceiro milênio, ainda ritualizamos esta passagem de tempo, o que dizer dos cristãos de mil anos atrás?

A entrada do homem cristão no segundo milênio não foi nada tranqüila. Ao menos, para aqueles que tinham noção do ano em que estavam. Sim, muitos não tinham. Afinal, as mercearias e açougues ainda não distribuíam folhinhas com a avidez que se vê hoje; e ninguém tinha que fechar o ano fiscal, fazer balanço ou acompanhar exaustivamente a retrospectiva do ano que passou pelos principais meios de comunicação. Para aqueles que, no entanto, sabiam para onde se dirigia o calendário, a virada do milênio constituía uma ameaça de proporções apocalípticas.

Foi esse o cenário quase desafiador escolhido pela autora Laura Gallego García para seu livro Finis Mundi. Vencedor do Prêmio Barco a Vapor 2003, promovido pelas Edições SM na Espanha, Finis Mundi conta a história de Michel, um jovem monge que, como único sobrevivente do ataque sofrido por seu mosteiro, precisa encontrar três talismãs do tempo que podem impedir o fim do mundo.

Michel, no entanto, não está sozinho nesta busca, iniciada três anos antes da virada do milênio. No longo caminho que terá de percorrer pelo coração da Europa medieval, ele terá a companhia de Mattius, um jogral que ganha a vida cantando e apresentando histórias, e Lucía, uma jovem destemida com um quê de Joana D’Arc. É este trio, a princípio improvável, que percorre o Caminho de Santiago de Compostela, visita o túmulo de Carlos Magno no que hoje seria a Alemanha e chega, com muito esforço, ao místico círculo dos druidas conhecido como Stonehenge. Em seu encalço está García, membro de uma confraria de adoradores do demônio, que também deseja os talismãs para instaurar o Mal sobre a Terra.

Fruto de uma cuidadosa pesquisa, o livro é gracioso, gostoso de ler e, ao mesmo tempo, empolgante. Tem tudo para agradar àqueles que não hesitam em mergulhar em outras épocas, sociedades e códigos de honra e conduta. Não é todo leitor, especialmente entre os mais jovens, que está disposto a largar o conforto de seu próprio mundo e linguajar, retratados em uma farta variedade de livros, à disposição nas prateleiras das livrarias. Mas mergulhar em universos desconhecidos ou distantes de nossa realidade é, às vezes, muito bom. Afinal, amor, amizade, perseverança e coragem são sentimentos atemporais, que atravessam intactos, passado, presente e futuro e que, nas mãos certas, sempre oferecem uma excelente história.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Ser ou não ser


Todas as coisas querem ser outras coisas
Editora Record (2006)
Leticia Wierzchowski
Ilustrações de Virgilio Neves


Todos os escritores querem ser Leticia Wierzchowski. Afinal, ter um livro seu transformado em minissérie da Rede Globo, não é para qualquer um. No entanto, no exercício diário de seu ofício, a autora vem se mostrando muito mais versátil do que um grande sucesso permitiria a tantos outros autores. Sem se deixar aprisionar pelo tema histórico desenvolvido no romance A Casa das Sete Mulheres, Leticia avança por outras áreas da literatura, como a infanto-juvenil, com muita delicadeza.

Seu primeiro livro para crianças, O Dragão de Wawel e outras lendas polonesas, tem a ver com suas raízes. A ascendência polonesa foi um caminho já trilhado por ela em romances como Cristal Polonês e Uma ponte para Terebin. Mas em Todas as coisas querem ser outras coisas, a Leticia que aparece não é descendente de poloneses.

É a Leticia mãe do João, uma escritora cheia de imaginação e histórias para inventar para seu filho e muitos outros leitores. São histórias que não nasceram em um país distante, mas em seu lar. Quase é possível vê-la brincando de imaginar que outras coisas as coisas do mundo do João poderiam ser. É nesse mundo que cintos querem ser serpentes, secadores de cabelo querem ser aviões e bonecas querem ser gente.

Todos os escritores querem ser Leticia Wierzchowski. Mas é preciso ter o precioso dom da imaginação para ser como ela e poder inventar, além de romances de fôlego e grande sucesso, pequenas e graciosas histórias, com jeito de faz-de-conta e cheias de poesia.