quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Um grande roteiro

As pessoas gostam de viajar para conhecer lugares distantes, e ter contato com pessoas e culturas diversas, certo? Nem sempre. O sistemático Phileas Fogg daria toda a sua fortuna para ficar em casa na Saville Row, em Londres, seguindo sua rotina, sem nunca topar com lugares, pessoas ou uma cultura que não fossem estritamente britânicos, londrinos e conhecidos. No entanto, foi esse mesmo personagem, protagonista de um dos mais deliciosos livros do mestre Júlio Verne, que arriscou toda a sua fortuna para dar a volta ao mundo em 80 dias, em um tempo em que não havia à disposição dos viajantes veículos como aviões, carros ou trens de alta velocidade. O ano dessa aventura era 1872. O meu ano de conhecer aquele que se tornaria um dos mais famosos roteiros do mundo, foi 1979.


Nesse ano, ainda criança, fui apresentada a uma das mais fascinantes viagens que um habitante do planeta Terra pode fazer: dar a volta no globo. Ainda hoje, sonho com isso (para quem não sabe, existem passagens aéreas de volta ao mundo – e seu preço é bem “terrestre”). Phileas Fogg e Júlio Verne despertaram em mim não apenas o desejo de conhecer lugares distantes e pessoas e culturas diferentes, mas, também, o gosto pelo planejamento das viagens e o domínio dos mecanismos que fazem com que elas transformem em desafios. Isso inclui fazer, muitas vezes, sozinha, o que é fácil para os que estão imersos naquela realidade cotidiana, mas não para você. Trens, aviões, farmácias, bancos, mercados, multas, roubos, ficar perdida, encontrar os lugares (com GPS e sem ele)...

Cada viagem minha tem sido uma pequena aventura, tutelada por ninguém. A sensação de sucesso final vem do fascínio de errar e acertar, além, é claro, do acúmulo e eventual uso das minhas experiências anteriores e da troca de conhecimentos e talentos com outros viajantes e companheiros de jornada. Com isso, já conheci diversos lugares do mundo sem estar presa aos horários, convenções e falta de desafios das excursões. Aliás, muitas delas propõem, sim, um desafio: ver o maior número de cidades, monumentos e pontos de interesse no menor número de dias possível, como se os viajantes estivessem, a exemplo de Phileas Fogg, apostando toda sua fortuna nisso.

Bem, mesmo com o personagem sendo quase um exemplo de viajante das modernas excursões, dada a sua pressa em passar pelos lugares, sua façanha permaneceu gravada em mim. Da mesma forma que Fogg, adoro minha casa e minha rotina, mas viajar é algo que me faz tirar os pés do chão, assim como o fizeram alguns episódios narrados no livro de Verne: o voo do balão, o uso do elefante e o barco a vapor queimado até o esqueleto por Fogg e seu valete francês Passepartout. É o valete, aliás, que garante alguns dos melhores momentos da trama. Seu ponto de vista latino dos acontecimentos e personagens britânicos já valeria a sua inclusão no livro. Mas o valete, cujo nome quer dizer, literalmente, “passa-por-tudo”, é aquele que passará, literalmente, por tudo na trama, desde ser deixado para trás até tomar o patrão por um ladrão de bancos e entregá-lo ao detetive que o persegue insanamente desde a partida. Só temos, inclusive, acesso às emoções e conflitos de Passepartout. O interior de Fogg é interditado aos outros personagens e também ao leitor, com exceção de um breve momento com Mrs. Auda, a viúva hindu que lhe salva a alma aos 45 do segundo tempo. São, portanto, as emoções, intervenções e desventuras de Passepartout que mudam os rumos da história até o grand finale, possível apenas por um capricho da escolha do roteiro e de um afortunado resgate na Índia.


A volta ao mundo em 80 dias pode ser vista, em síntese, como uma história sobre a honra. Ela está presente na aposta de Fogg, feita apenas sem nenhum outro propósito que não o de provar seu ponto de vista e cumprir sua palavra; está na persistência do detetive Fix, que dá a volta ao mundo perseguindo o que acreditava ser a justiça; está em Passepartout e sua lealdade e disponibilidade para com seu patrão, mesmo nos momentos de conflito; está no salvamento de uma mulher condenada à morte, mesmo que isso pudesse custar o sucesso da empreitada.

A honra está presente em todas as páginas do livro de Verne, mas, acima de tudo, A Volta ao Mundo em 80 Dias é uma aventura cativante. Pode não ser uma espécie de visão do futuro, como Vinte mil léguas submarinas. Pelo contrário, em termos de recursos tecnológicos, ela é um retrato do passado, presa à sua época. Mas viajar por nosso planeta e mudar rumos ao sabor dos acontecimentos, ainda é, hoje em dia, um desafio e uma façanha absolutamente possível de ser vivida por nós. Conhecer lugares distantes e utilizar os recursos disponíveis para sobreviver nesses locais termina por ser uma pequena aventura à disposição de todos. Daí, talvez, ainda existir o fascínio por um livro tão “ultrapassado”. Eu mesma já me vi cogitando tomar um daqueles “riquixás” novaiorquinos para voltar ao hotel em uma noite gelada. Ou argumentando com policiais tchecos, de madrugada, para que não me multassem, pois eu não tinha dinheiro. Já pulei carnaval em porão de bar novaiorquino, já dancei no subsolo de uma igreja desativada em Paris. Já me joguei dentro de trem suíço ou negociei em húngaro, sem falar uma palavra dessa língua. Já andei em um veleiro na Grécia, tomando banho de torneira e só descendo à terra de bote salva-vidas, de dia ou de noite. Já dormi com mais de trinta pessoas em uma casa apertada de Conceição da Barra, no Espírito Santo, tomando banho de cano no quintal e comendo miojo feito na varanda. Já andei de trem por baixo do Canal da Mancha, já voei de turbo-hélice. Já fiz e já pensei em fazer um monte de coisas diferentes quando estou viajando. Algumas podem até soarem tolas a viajantes muito mais cheios de histórias radicais para contar do que eu, repletas de escaladas, saltos, voos, corridas e mergulhos. Mas essas pequenas aventuras são as imensas voltas ao mundo para mim, que começaram com a leitura de livros como o de Júlio Verne.


Em tempo: eu li, quando criança, um exemplar da Coleção Grandes Aventuras, da Editora Abril, comprado nas bancas. Já tive, depois desse livro, diversas edições de A Volta ao Mundo em 80 Dias. Algumas, com belíssimas ilustrações. Mas nenhuma delas teve, para mim, o encanto e o frescor daquele texto, feito sob medida para os jovens e para a imaginação de meninas de nove anos que gostam de sonhar com aventuras.

domingo, 19 de setembro de 2010

Abrindo as portas de Portugal

Coleção O Clube das Chaves


Maria Teresa Maia Gozalez
Maria do Rosário Pedreira
Capa e ilustrações: Luís Anglin

Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo

As crianças d’além mar gostam tanto de histórias de detetive quanto as daqui. Pelo menos, é esta a conclusão que se chega percorrendo as prateleiras portuguesas em busca de títulos infanto-juvenis.

Há alguns anos, em uma visita à Lisboa, trouxe alguns desses infanto-juvenis na mala. Gostei de todos, mas os meus preferidos são os simpáticos volumes de O Clube das Chaves, cujo primeiro, O Clube das Chaves entra em acção, foi publicado em 1990. O sucesso foi tão grande que inspirou mais de uma dúzia de aventuras da mesma série. Infelizmente, só pude trazer cinco delas, escolhidas aleatoriamente, comigo. Mas foi o suficiente para me tornar uma fã.

Todas as histórias têm em comum a preocupação de discutir assuntos da atualidade de uma forma leve e apresentar um pouco de Portugal, de suas cidades e algumas de suas tradições, à garotada. O resultado é que em 2000 (ano da edição comprada por mim), a série O Clube das Chaves já contava com mais de 750.000 exemplares vendidos. Um recorde, mesmo para um país de leitores. Afinal, Portugal conta com menos de um décimo da população brasileira, algo por volta de treze milhões de habitantes. Lembrando que a faixa etária a qual a coleção se destina está em torno dos dez anos de idade, é possível dizer que praticamente todos os portuguesinhos conhecem as aventuras escritas a quatro mãos por Maria Teresa Maia Gonzalez e Maria do Rosário Pedreira. A formação de educadoras das autoras transparece em todas as linhas, sem jamais, no entanto, aborrecer os leitores. O Clube das Chaves também virou série de televisão, o que só deve ter contribuído para aumentar seu sucesso.

A história é muito simples e interessante. Em seu décimo terceiro aniversário, Pedro recebe um curioso presente deixado por seu avô, recentemente falecido. Trata-se de uma caixa com diversas chaves numeradas, de todos os tamanhos e formatos. Todas elas têm etiquetas penduradas, onde estão pequenos enigmas, que deverão ser desvendados por Pedro e quem mais ele desejar. Este jogo levará o garoto a convidar sua irmã Anica, a prima Guida e o amigo Frederico para fundarem o Clube das Chaves e, em nome dele, percorrerem diversos cantos de Lisboa e do resto de Portugal, desvendando os mistérios propostos pelo avô.

As aventuras dos quatro são acompanhadas pelas histórias do resto da família deles. Pais, mães, tios, primos, todos eles têm participação na trama, geralmente ilustrando situações do cotidiano como namoros, a busca pelo primeiro emprego, pequenas rusgas de casais ou separações, por exemplo. Além disso, o dia-a-dia dos personagens tem tanto valor quanto os enigmas que deverão ser desvendados por eles. Eles se apaixonam, vão a festas, têm lições de dança ou de música, participam de campeonatos esportivos e fazem novos amigos, inclusive brasileiros.

Para os jovens portugueses, O Clube das Chaves é uma rara combinação equilibrada de diversão, cultura e educação. Para nós, brasileiros, é uma excelente forma de conhecer um pouco mais dos nossos irmãos portugueses. Suas cidades, suas tradições, hábitos, costumes, maneira de falar, o que pensam do Brasil, dos brasileiros, do nosso sotaque (a ortografia que tenta imitar o jeito de falar dos personagens brasileiros é divertidíssima), de nossas telenovelas...

É engraçado nos ver pelos olhos dos outros. Principalmente através dos olhos de quem está ajudando a formar toda uma geração de portugueses, povo que representa a pedra fundamental da formação da nossa sociedade. E isso torna livros como os da série O Clube das Chaves ainda mais interessantes para nós.

Para entrar em contato: http://www.editorialverbo.pt/