domingo, 27 de abril de 2008

O Menino Flicts

O Menino da Lua
Melhoramentos (2006)
Ziraldo

A Terra é azul é, em sua simplicidade quase infantil, uma das frases mais emocionantes da história da humanidade. Proferida em 1961, pelo astronauta russo Yuri Gagarin, ao ver a Terra do espaço, ela deu cor ao nosso planeta, definiu os limites da nossa casa e mostrou ao homem seu lugar no universo, me acompanhando pela vida, como uma espécie de lembrete. Lê-la, de tempos em tempos, acompanhada da imagem da Terra azul coberta de nuvens, a flutuar no espaço, me recorda como as coisas simples da vida são grandiosas, e vice-versa.

A Lua é Flicts!, frase final do meu livro preferido do Ziraldo, também me acompanha pela a vida. Ela sempre me recorda que há lugar para todos, e que é preciso buscá-lo, mesmo fora dos limites do nosso mundo e, principalmente, fora de nossos próprios limites.

É difícil descrever o alívio e a alegria quando da descoberta de que flicts, a cor que não achava seu lugar em lugar nenhum da Terra, havia se encontrado. Mas é fácil dizer que Flicts é, com certeza, um dos mais belos livros que já li, apesar de sua trajetória ter sido um pouco ofuscada pelo avassalador Menino Maluquinho, dono de um carisma praticamente inigualável dentro da literatura infantil brasileira. Mas quem foi tocado por Flicts em uma era pré-maluquinha, jamais se esquecerá da cor da lua.

Como aos grandes mestres são permitidas variações sobre o mesmo tema, o novo livro de Ziraldo é uma espécie de Flicts que se passa em um futuro muito, muito distante. Aliás, a pequena explicação do autor, logo no início, sobre a época em que se passa a história, já valeria a leitura. Mas, como o prazer de passear entre as palavras e os traços de Ziraldo é inesgotável até o ponto final, aconselho a qualquer leitor a seguir adiante e conhecer a história de Zélen, o menino da Lua.

Zélen é um garoto que está a procurar seu lugar em nosso Sistema Solar. É pequeno, tem o rosto furadinho e, se você prestar atenção, ele é “cor de” flicts. O menino da lua queria muito fazer parte de uma turma que apronta todas em nosso sistema solar. Mas como cada menino representa um planeta, parece que ele não se encaixa ali. Será que Zélen vai encontrar seu lugar?

No fundo, somos como Flicts e Zélen, buscando eterna e diariamente nosso lugar. Buscando nos encontrar, todos os dias. E é por isso que, não importa quantas vezes, e de quantas formas Ziraldo conte essa história, seus leitores adorarão (re) lê-las.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Quatro contos e uma certeza



Como casar com André Martins
Girafinha (2006)
Índigo
Ilustrações de Janaína Tokitaka

Eu gosto de história com começo, meio e fim. Gosto de protagonista, antagonista, conflito, suspense, beijo na boca e final feliz. Sou a mais quadrada dos leitores e, por isso, estranhei quando, ao fechar o livro, eu disse para mim mesma: adorei!

A estrutura é curiosa: são quatro contos curtos protagonizados por uma narradora de treze anos. Em comum, eles contam apenas com seu olhar original da protagonista sobre as pessoas e acontecimentos. Ah, e com uma patética e indispensável paixão adolescente não correspondida pelo vizinho, um daqueles garotos super na dele.

Em meio à ebulição de idéias, hormônios e situações com um pé no non-sense que tomam conta do livro, o que mais se destaca é o estilo da autora, dono de um humor fino e inteligente. Índigo passeia com desenvoltura e elegância por quatro contos que não formam uma história única com começo, meio e fim, mas conseguem, mesmo assim, cativar o leitor.

O primeiro conto traz o bizarro “Espetáculo do Engenheiro Alemão na Garagem”, uma espécie de reality show, promovido pelo irmão da protagonista às custas de um colega de seu pai que estava morando temporariamente na garagem.

O segundo conto apresenta o sonho da narradora de ter um pino na perna, como seu amado, piloto de kart. As loucuras que comete para igualar a façanha do amado deixam marcas, mas talvez não exatamente as sonhadas.

No terceiro conto, a preocupação é com a escassez de água no planeta, lembrando que questões sociais costumam fornecer um excelente pretexto para lágrimas adolescentes. Aos treze anos, choramos, sem saber direito porque estamos chorando, quer dizer, até sabemos, mas é difícil explicar e... Bem, quem nunca se preocupou com o destino do planeta e do garoto eleito, tudo ao mesmo tempo, que atire a primeira pedra.

Por fim, um teste vocacional é prova de fogo para descobrir se uma possível união com André Martins seria bem-sucedida.

Querem saber se a protagonista termina com o seu príncipe encantado? Ora, façam-me o favor! Depois desses quatro contos, você está se divertindo tanto, que só há mesmo uma certeza: a de desejar ler mais contos de Índigo. Finais felizes tornam-se absolutamente dispensáveis. Afinal, você conhece quantas adolescentes que viveram felizes para sempre com seu primeiro amor? Embora isso não queira dizer que um dia... quem sabe...

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Peça Flanagan fora de temporada

Série Flanagan
(Andreu Martín e Jaume Ribera)
Tradução: Chico Mattoso

Não peça sardinha fora de temporada
(Planeta Jovem, 2003)

Todos os detetives se chamam Flanagan
(Planeta Jovem, 2003)

Uma das vantagens trazidas pelas gigantes espanholas que aportaram no mercado editorial brasileiro, como a Planeta, é uma bem-vinda mudança de cenário dos livros de ficção. De Londres passamos para Madri, de Nova York para Barcelona. Estamos lendo mais obras traduzidas do espanhol e, com isso, sendo apresentados a personagens interessantíssimos, muitas vezes bem mais próximos de nosso jeito latino de ser do que os britânicos ou americanos.

Essa série conta com um detetive adolescente, Juan Anguera, o Flanagan, como protagonista. É o garoto que narra, em primeira pessoa, suas hilárias aventuras pseudo-noir em sua escola e no bairro de classe média baixa, meio decadente, onde mora, em Barcelona. Os títulos da Série Flanagan apresentam diversão da melhor qualidade, fazendo uma espécie de homenagem à literatura policial e seus detetives particulares, fugindo daquela forma meio quadrada de livros adolescentes feitos especialmente para serem adotados nas escolas.

A Espanha é um país de leitores. Eles têm o hábito de ler para refletir, mas, também, para se divertir, desvinculando a prática da leitura das obrigações escolares das crianças e dos adolescentes com mais intensidade do que o Brasil. No entanto, é possível trabalhar na escola, e muito bem, com a série, que trata de assuntos atuais, e possui uma forma bastante interessante de apresentar e desenvolver os personagens e o cenário onde eles atuam.
Leitura bem bolada e despretensiosa, as aventuras de Flanagan têm tudo para agradar aos leitores de onze anos para cima. No entanto, se bobear, os mais velhos se divertirão mais com o humor do jovem detetive do que os mais novos como, às vezes, ocorre com certos desenhos animados: os garotos adoram, mas quem entende mesmo todas as piadas e citações são os adultos... Bem, faça o seguinte: presenteie alguém mais novo com a Série Flanagan. Mas, logo depois, pegue os livros emprestados. Você irá adorá-los.

sábado, 19 de abril de 2008

De perto, ninguém é normal


Vic
Autor: Cristiane Dantas
Ilustrações: Jean-Claude
Edições SM


Eu já havia recebido a notícia de que o meu livro estava pronto. Já havia conhecido uma prova do meu Era mais uma vez outra vez, texto vencedor do Prêmio Barco a Vapor 2006, por e-mail. Mas nada se compara à sensação de ter o livro pronto, “nascido”, em suas mãos. Ciente de que ele estava para chegar, recebi um envelope das Edições SM com o coração batendo de expectativa. Só que, ao abri-lo, vi sair dali de dentro o livro... Vic, da autora Cristiane Dantas!

Entrando em contato com a editora, descobri que meu livro seguira para a Cristiane e eu recebera o dela por engano. Vic é parte da deliciosa fornada dos melhores títulos que concorreram ao Prêmio Barco a Vapor daquele ano; eles costumam também ser publicados pela SM. No caso, esse fazia parte da série laranja, destinada aos leitores na faixa etária dos 10, 11 anos. Engano desfeito, risadas dadas, eu recebi meu livro poucos dias depois. E, de quebra, tive o privilégio de ser uma das primeiras leitoras do Vic. Portanto, no final das contas, descontada a ansiedade, a troca foi muito proveitosa. Quanto à Cristiane, soube depois que ela também se divertiu com a história da correspondência trocada e gostou muito do meu livro. Estamos, pois, empatadíssimas, pois também adorei o dela.

Mas vamos a quem interessa: à Vic. A menina que dá nome ao livro e sua família formam um daqueles divertidos microcosmos literários onde, mesmo de longe, ninguém é lá muito normal. A começar pela protagonista que, às vésperas de completar doze anos, é gótica de carteirinha, come cebola com laranja, não leva o mínimo jeito para qualquer atividade esportiva e, muito menos, para ser popular, seja entre os meninos, seja entre as meninas. Sua mãe é uma perua workaholic, a avó, uma enciplopédia de auto-ajuda, o meio-irmão, infernal. Para completar, a mãe resolve casar de novo, o que renderá à Vic um novo meio-irmão surfista e um avô que se revela um dos melhores personagens da trama.

Nem a família Osbourne seria tão freak e interessante quanto o grupo de personagens criados pela autora; aliás, referências pop e atuais são um constante no texto. Abusando de sua experiência de dez anos como roteirista de televisão, Cristiane é ágil nos diálogos, utilizando gírias e a linguagem adolescente com habilidade; é fácil sentir-se parte desse universo, bem como é fácil para os jovens leitores identificarem-se com Vic, mesmo sem nunca terem lido Edgar Allan Poe.

O melhor do texto é que, como diz a própria autora, essa história “não é conto de fadas, nem filme de sessão da tarde”. Os personagens não mudam da água para o vinho e nem do dia para a noite. Aceitação é a palavra de ordem em uma história em que a protagonista aprende a conviver com a família que tem e, sobretudo, consigo mesma. Ao dar este passo, a vida de Vic sai do canto mais fundo, escondido e escuro do poço, mas não passa a ser cor-de-rosa. Torna-se, sim, cheia de altos e baixos e de momentos fáceis e difíceis. De vez em quando, até segue em linha reta essa vida que “é meu bem, meu mal”. Ou seja, normalmente fora do normal. Como a de todo mundo.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Viajando na História


Uma Viagem ao Tempo dos Castelos
Editora Landy (2005)
Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada
Adaptado para o português do Brasil
Ilustrações de Dave Santana e Mauricio Paraguassu


Em meu tempo de colégio, todo novo ano letivo trazia uma antiga certeza: a matéria de história começaria pelas Grandes Navegações. E, mais uma vez, nós, alunos, acompanharíamos as desventuras de Pedro Álvares Cabral e Pero Vaz de Caminha rumo às Índias, com uma rápida escala naquele enorme resort natural que já era Porto Seguro. É claro que o grau de dificuldade aumentava. Nomes, datas e lugares eram progressivamente acrescentados ao passado. O Venturoso. Vasco da Gama. Bartolomeu Dias. Sagres. A Tomada de Ceuta. 1415. Até que, andando para trás, feito caranguejo, chegávamos, no pré-vestibular, à Dinastia de Avis. Ufa!

Essa curiosa resolução didática era justificável por diversos motivos. Entre eles, o fato das Grandes Navegações serem o prólogo da entrada do Brasil na História Universal. No entanto, ela sempre conseguia deixar nos estudantes a sensação de que a história de Portugal passou direto das cavernas às caravelas. Era como se nenhum acontecimento digno de nota tivesse ocorrido neste intervalo. Ora, pois, ledo engano. Portugal é dono uma história riquíssima. Envolve celtas, romanos, mouros, guerreiros, castelos, reis e rainhas cercados por episódios tão fascinantes que muitos se tornaram lendas, ou algo próximo a isso. Como, por exemplo, o fantástico relato de heroísmo de Egas Moniz.

Uma Viagem ao Tempo dos Castelos conduz os jovens leitores portugueses, com muita graça, à Idade Média. Não ao medievalismo mergulhado na fantasia representado por Camelot, mas ao tempo em que personagens reais, como Dom Afonso Henriques, estavam a fazer nascer Portugal.

Ana e João não viam muita graça em passar suas férias na Serra do Marão. Mas, ao invés do tédio esperado, os dois encontram uma grande aventura. Através de uma máquina do tempo, eles voltam ao século XII, época da fundação de Portugal, onde conhecem diversos personagens históricos e observam seu modo de viver.

E o que nós, aqui no Brasil, temos a ver com tudo isso? Tudo e nada. Nada, porque certos episódios, como a fundação de Portugal, pertencem a um passado ainda distante das Grandes Navegações e, conseqüentemente, de nossa história. E tudo, porque só entenderemos quem nós somos realmente, como povo e nação, quando nos abrirmos a receber a história de nossos colonizadores.

Quase nada aprendemos de Portugal, salvo os episódios relacionados às Grandes Navegações, às Reformas Pombalinas e à fuga da Família Real para o Brasil, quando das Invasões Napoleônicas. Mas Portugal tem um passado de grande peso em nossa própria história. E, graças a determinadas heranças, como a lingüística, é muito provável que nossas histórias possam vir a se cruzar no futuro. Na televisão, por exemplo, elas já se cruzam. E, na literatura, os laços têm se reforçado cada vez mais.

Se penetrar na história de nossos antepassados pode ser feito de uma forma interessante e divertida, por que não aproveitá-la? Além disso, uma boa história para crianças independe da História. Mas saber usá-la ao seu favor para divertir e ensinar, como é o caso de Uma Viagem ao Tempo dos Castelos, ajuda bastante.

Em tempo: Egas Moniz era o escudeiro de Dom Afonso Henriques. Durante o cerco do rei de Leão e Castela a Guimarães, vendo que não tinham homens para resistir ao ataque, Moniz foi ao encontro do rei de Leão e prometeu-lhe, em troco da suspensão do cerco, a vassalagem de Afonso Henriques. Você prestou juramento ao rei de Leão? Não? Nem Afonso. Após derrotar sua mãe na Batalha de São Mamede, ele passou a governar o Condado Portucalense, sem a mínima intenção de obedecer a quem quer que fosse.

Homem de palavra, Moniz apresentou-se, com toda sua família, em trajes de condenado, com a corda no pescoço, ao rei de Leão e Castela. Pedia o resgate de sua honra através de sua morte, uma vez que não havia como cumprir sua palavra. Furioso, o rei quase mata mesmo todo mundo. No entanto, impressionado com a coragem daquele homem, acabou por deixá-lo partir, louvando sua lealdade e honradez. Embora enfeitado pelo tempo, o episódio é real. Em algum lugar, em alguma época da história do povo que construiu os alicerces da nossa sociedade, existiram homens assim. E é de histórias e de homens como estes que precisamos, cada vez mais, em nossa própria história.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Um clássico, apesar de tudo


O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa (1950)
Coleção As Crônicas de Nárnia
C.S.Lewis
Martins Fontes (edição de 2003)
Tradução: Paulo Mendes Campos
Revisão da tradução: Silvana Vieira
Ilustrações: Pauline Baynes


Durante a Segunda Guerra Mundial, os irmãos Pevensie, Peter, Susan, Edmund e Lucy, são alojados na fabulosa casa de um professor que nunca viram antes. Como tantos outros jovens e crianças londrinos, eles foram enviados para casas de voluntários desconhecidos, no campo, bem longe da capital constantemente bombardeada onde viviam. Um dia, brincando de esconder, eles descobrem um armário mágico, cujo fundo oferece passagem para uma terra encantada chamada Nárnia. Lá, as crianças têm que ajudar o Deus-Leão Aslam e seu exército de criaturas mitológicas a vencer a Feiticeira Branca que condenou aquela terra a um longo e tenebroso inverno sem natais.

Em 1950, C.S.Lewis escreveu essa história, que deu origem a uma das mais famosas sagas de fantasias do mundo, seguindo o exemplo de seu amigo e colega de magistério J.R.R.Tolkien. Para quem não sabe, Tolkien é o autor da famosa trilogia O Senhor dos Anéis. Lewis não teve o fôlego de seu amigo para criar genealogias e línguas próprias para seu livro. Provavelmente, nem queria fazer isso. Professor de filosofia e história antiga, além de amante da teologia e cristão fervoroso, uma de suas principais intenções era criar uma grande alegoria cristã.

Tolkien não gostava de As Crônicas de Nárnia. E gostava menos ainda das alegorias cristãs utilizadas pelo amigo. E ele não deixa de ter razão. O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa passaria tranqüilamente suas mensagens através da fantasia, sem ser necessário que Lewis tentasse catequizar ninguém. Nada contra a utilização de alegorias cristãs. Elas têm tanto direito de estarem presentes no livro quanto os faunos, minotauros e centauros da mitologia grega. A questão é que o texto perde a mão quando as alegorias cristãs se tornam óbvias demais. Literatura é sutileza. E isso, às vezes, falta em Lewis, na sua ânsia de remeter ao cristianismo.

O autor se sai bem melhor quando é possível ler, em sua Nárnia, uma metáfora do que foi a Europa assolada por um sangrento conflito mundial. É possível, no entanto, ver em Nárnia um refúgio dos horrores da Segunda Guerra. Naquele verão, as crianças alojadas na casa de um professor teriam descoberto, na magia da literatura e da arte de inventar histórias, uma maneira de suportar os bombardeios, a saída forçada de casa, o alojamento no campo na casa de um estranho. A Feiticeira Branca, por exemplo, tem uma polícia secreta que nada fica a dever à SS de Hitler.

Além disso, através de Nárnia as crianças teriam encontrado uma maneira de lutar e vencer o inimigo. Fosse ele interno, como os conflitos de Edmund, o irmão traidor, fosse ele externo, como Hitler e seus aliados, que acuaram o reino do leão (Inglaterra), condenando-o a um longo e tenebroso inverno, feito de bombas, mortes e fome.

Os irmãos Pevensie teriam se fortalecido tanto neste verão de histórias, imaginação e fantasia, que entraram na casa do professor como crianças e teriam saído, metaforicamente, como adultos, prontos para conviverem uns com os outros com respeito e a enfrentar a vida e o mundo.

Bem, por causa disso tudo ou apesar disso tudo, o livro é um clássico, assim como o restante de As Crônicas de Nárnia, e vale a pena ser conhecido. O filme, produzido pela Disney, é fiel às páginas escritas por Lewis e, através da leitura competente do diretor Andrew Adamson, consegue ressaltar os elementos humanos, superando, às vezes, Mestre Lewis em sua narrativa. As falhas do filme são, em sua maior parte, decorrentes do próprio livro em que foi baseado.

O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa tem seu valor por ser, há décadas, um dos primeiros livros em que gerações de inglesinhos são apresentadas a uma mistura de figuras mitológicas e elementos fantásticos com personagens do suposto mundo real, criando uma ponte entre a realidade e a fantasia.

Aqui no Brasil, Monteiro Lobato fez essa mistura para nós. Antes de Lewis, vale ressaltar. Quem não se lembra das festas no Sítio do Picapau Amarelo, que reuniam centauros, personagens dos contos de fada e até mesmo Dom Quixote? Eu me encantei com faunos e minotauros no labirinto das páginas de Lobato. E considero, mais do que qualquer Lewis (com a exceção honrosa do Carroll, talvez), livros como O Picapau Amarelo algumas das maiores obras-primas da fantasia. Melhor ainda, sem nunca perder a mão das metáforas.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Soturno e encantador




Os lobos dentro das paredes
Rocco Jovens Leitores (2006)
Neil Gaiman
Tradução de John Lee Murray

Ilustrações de Dave Mc Kean


Os livros infanto-juvenis de Neil Gaiman, o aclamado autor de Sandman, uma das mais badaladas graphic novels de todos os tempos, possuem uma estética que encontra paralelos nos filmes sombrios e estranhamente delicados de Tim Burton, como Edward Mãos-de-Tesoura ou A Noiva Cadáver.

Gaiman estreou nesta seara com Coraline, uma mistura gótico-pós-moderna de Alice no País das Maravilhas com As Crônicas de Nárnia. Pode até soar um pouco estranho (e estranho é a palavra-chave para definir Gaiman e sua obra), mas o resultado é perturbador e, ao mesmo tempo, encantador. Para os jovens leitores da atualidade, que amam climas de suspense com um toque de horror, e não têm medo de finais que deixem de seguir o padrão felizes-para-sempre, é um prato cheio.

Os lobos dentro das paredes não foge ao estilo daquele que se apresenta como um inglês que mora nos Estados Unidos, em uma casa esquisita, com a mulher, três filhos e excêntricas coleções de computadores e gatos, além de uma horta repleta de abóboras exóticas. O humor refinado e sombrio de Gaiman está mais do que presente na história de Lucy, uma garotinha que identifica os ruídos estranhos que saem da parede de sua casa como sendo obra de lobos.

A família, a princípio, nega as evidências, pois, “se lobos saírem das paredes, está tudo acabado”. Mas, uma noite, acontece o que todos temiam: os lobos saem e tomam posse de tudo. Assistem à sua televisão, jogam seus videogames, comem suas geléias, vestem suas roupas e, em festas de arromba, executam loucas danças lupinas. Começa então a reconquista da casa pela família exilada no quintal, até o final inesperado.

As ilustrações de Dave McKean, que contribuiu na produção do segundo e do terceiro filme da série Harry Potter (não por acaso o melhor deles em termos de visual, brumoso na medida certa), são fundamentais para o delicioso resultado do livro. O traço de McKean consegue ser anguloso e vitoriano, o que casa como uma luva com o estilo do autor; sem contar os recortes de fotografias e mapas, mais as estampas que parecem evocar Klimt. O projeto gráfico impecável, somado à fantasia e humor de Gaiman, torna Os lobos dentro das paredes simplesmente imperdível.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Herança sem preconceitos



ABC do Mundo Árabe
Edições SM (2006)
Paulo Daniel Farah
Ilustrações de Alê Abreu




O Brasil é um país de imigrantes. Ninguém nunca precisou me dizer isso. Eu sei. Sempre soube. É uma verdade que está nos meus olhos, cabelos, nariz, pele. Está na comida cujo aroma enche minha casa nos dias de festa. Está em diversas palavras que troco somente com minha família, pois só seus membros saberão, no meu círculo de conhecidos, o que elas querem dizer. Enfim, o Brasil ser um país de imigrantes é uma verdade que está no meu ser, no meu pensar e no de milhões de brasileiros.

Nem todos chegaram aqui com alegria. Alguns vieram como escravos. Outros, movidos pela fome e pelos horrores da guerra. Mas muitos chegaram atraídos pela oportunidade de plantar uma vida melhor em uma terra tão jovem, cheia de oportunidades.
Os avós de minha avó paterna vieram da Alemanha. Um bisavô paterno, da Polônia. Meu avô materno nasceu em Portugal. E dois de meus bisavós maternos vieram do Líbano. Ele, eu não conheci. Ela chamava-se Alice. Eu a conheci. Mas nunca ouvi uma palavra em árabe dos seus lábios. Tal privilégio pertence à infância de minha mãe e tios que, muitas vezes de ouvidos colados às portas, ouviam as misteriosas e exóticas conversas em árabe de minha bisavó com os irmãos.

Minha herança é menor, como sói ocorrer aos legados repartidos de geração em geração. Minhas lembranças foram regadas a pequenas palavras ensinadas para divertir crianças, a mesas abarrotadas de esfihas, pão sírio, quibe cru e vidros repletos de biscoitos cobertos de zatar. No natal, juntava-se aos damascos e tâmaras comprados no Saara, no centro do Rio, uma jujuba gigante de aniz, cujo nome agora me escapa. Mas minhas lembranças trazem também cenas de lamúrias e culpas. Sim, está tudo incluído no pacote. A parte boa e a nem tanto assim. Faz parte das dores e delícias de sermos quem somos, depositários de culturas ancestrais mescladas umas às outras.

Este sentimento de pertencer a mundos e culturas diversas não está presente apenas em mim, é óbvio. Conheço gente que tem mil histórias para contar a respeito de seus antepassados italianos, espanhóis, ucranianos ou japoneses. Eu mesma tenho histórias a contar sobre minhas outras “partes”, como a portuguesa e a polonesa. Mas foi minha herança sírio-libanesa que se viu mexida ao folhear o ABC do Mundo Árabe, de Paulo Daniel Farah.

Farah, professor da USP, dirige o Centro de Estudos Árabes de São Paulo. Morou no Oriente Médio e na África e traduziu obras do árabe, do persa, francês, inglês e alemão, além de escrever regularmente sobre a cultura, a literatura e a história árabes. Através das Edições SM, Farah fez chegar às mãos das crianças brasileiras uma espécie de dicionário, onde, percorrendo o alfabeto, ele apresenta paisagens, comidas, palavras, animais, cidades, hábitos e personalidades da cultura árabe.

Estão presentes os indefectíveis verbetes camelo e quibe. Mas as crianças brasileiras, descendentes de árabes ou não, também terão a oportunidade de saber que o nome daquele pano que os homens usam na cabeça para se proteger do sol é keffia. Poderão ainda conhecer o prêmio Nobel Naguib Mahfuz de uma forma resumida e simpática, e aprender o significado de diversos nomes próprios em árabe. Os verbetes não são longos, mas o livro levou dois anos para ser feito, pois as palavras foram cuidadosamente escolhidas para oferecer, em uma linguagem acessível às crianças, panoramas históricos e contemporâneos do mundo árabe.

As ilustrações de Alê Abreu são um encantamento à parte. A primeira levou oito meses para sair, pois muitos desenhos foram feitos até chegar ao espírito pretendido pelo autor, utilizando técnicas variadas, como lápis, caneta hidrográfica, aquarela e acrílica. Tanto esforço valeu a pena. O resultado é deslumbrante como uma viagem de tapete mágico, traduzindo em imagens, de um delicado colorido, toda a riqueza da herança árabe. Uma herança que, a propósito, não é só minha. Como escreveu o também descendente de árabes Milton Hatoum, no prefácio do livro, “o mundo herdou da cultura árabe conhecimentos de aritmética, arquitetura, agricultura, medicina, astronomia, filosofia e literatura”.

O ABC do Mundo Árabe é, portanto, um excelente caminho para aprender mais, sem preconceitos, sobre um povo que ajudou a construir a história do Brasil e do próprio Ocidente, despertando o desejo de que mais culturas e costumes sejam conhecidos ainda na infância.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

A arte encantada de ouvir e contar histórias


A princesinha
Editora 34 (2000)
Frances Hodgson Burnett
Tradução de Ana Maria Machado
Texto integral


Durante muitos anos, quase tantos quanto posso lembrar, Sarah Crewe foi uma de minhas personagens favoritas. O interessante é que ela não era simpática e alegre. Sarah era uma criança séria, calada, órfã de mãe, vinda da exótica e colorida Índia para a cinzenta e sisuda Inglaterra do final do século XIX. E não era uma princesa no sentido real da palavra. Sua realeza estava na delicadeza dos seus modos e na dignidade das suas atitudes, embora os mais mesquinhos acreditassem, no início do livro, que estava em sua considerável fortuna.

Ainda posso vê-la entrando no colégio dirigido por Miss Minchin, levada pelo pai que tanto a amava. Aliás, nas inúmeras vezes em que li o livro, eu me perguntei como um homem tão bondoso não fora capaz de enxergar toda a ambição e crueldade da diretora daquele internato de garotas. Mas, como um conto de fadas que se preze precisa de um homem ingênuo como o pai da Cinderela e de gente má como a madrasta, eu sempre deixava esse detalhe para lá. E mergulhava, extasiada, na descrição da vida luxuosa e encantada de Sarah, transformada subitamente, após a morte de seu pai, em um cotidiano de provações e miséria.

O que mais me atraía nesse delicado clássico moderno da literatura mundial era a estratégia desenvolvida por Sarah para sobreviver em meio à torrente de humilhações, frio e fome a que ela foi submetida no sótão do colégio da recalcada Miss Minchin e de sua irmã submissa e apagada. Pois aquela criança-personagem introvertida, mas amável, apreciadora dos livros era, mesmo antes do infortúnio que se abateu sobre sua sorte, uma extraordinária contadora de histórias.

No início, Sarah inventava e contava histórias ao pé da rica lareira de seu lindo quarto. Sua audiência, sempre democrática, era formada por todas as marginalizadas do colégio. A caçulinha, a gordinha desajeitada, a criada de sua idade, explorada pela patroa inescrupulosa: todas elas encontravam, na força das palavras e no envolvimento diário com as narrativas de Sarah, o estímulo necessário para seguirem adiante com suas vidas e seus problemas. Mais ou menos como hoje encontramos, em uma novela ou um filme, um momento de relaxamento e de escape. É diante da tevê, vivenciando a história dos outros, que costumamos passar a limpo nosso dia e nossas próprias histórias.

Ao ver-se abatida pela miséria, foi na força da imaginação que Sarah encontrou recursos para tolerar sua nova vida. Inteligente, a menina sabia que tudo aquilo não passava de um paliativo. Mas também sabia que, sem esse precioso alimento, sua alma morreria. E não restaria mais nada, a não ser a aridez da luta diária por uma mera sobrevivência.

O final trouxe felicidade à protagonista, embora não do jeito que eu esperava. Desde que a morte do pai de Sarah foi anunciada, em meio às comemorações do seu décimo segundo aniversário, desejei a volta dele, do fundo do meu coração leitor de apenas sete anos de idade. Mas não houve um engano: o pobre homem realmente perecera em suas minas de diamante. Esse final feliz frustrado foi uma das muitas lições que aprendi com esse livro.
A outra grande lição que recebi, sem sentir, e que só hoje percebo ter se tatuado em minha alma, tem a ver com o valor da arte de inventar e contar histórias. Nunca mais saiu de dentro de mim a certeza de como as narrativas, em quaisquer formas que se apresentem a nós, transformam nossas vidas em algo muito maior do que a vida em si própria. Transcendem a nossa luta pela sobrevivência diária para colorir nossa existência, para nos fazer maiores e mais fortes, aptos a enfrentar os encantos e os desencantos inerentes ao nosso dia-a-dia.

A princesinha Sarah me fez acreditar no poder e na imensa felicidade ofertada pelas palavras e pela arte de inventar e contar histórias. Graças a livros como esse, obtive a graça de ler e escrever histórias por prazer. E de saber encontrar, nas narrativas, aliadas para transformar meu cotidiano em algo extraordinário. Ao menos enquanto durar a arte encantada de ouvir e contar histórias.

Em tempo: existem outras edições de The little princess, publicadas por outras editoras. A edição que eu li quando era criança foi publicada pela Ediouro, com texto em português de Oswaldo Washington. Chamava-se A Pequena Princesa e fazia parte da Coleção Elefante. Quase já não é possível encontrá-la.

A Editora Ridell tem uma edição resumida em 32 páginas. Mas o texto integral é sempre mais rico; ainda mais em um livro onde os maiores encantos estão nos detalhes.

Outros livros famosos de Frances H. Burnett também foram publicados por mais de uma editora. Entre eles, O Jardim Secreto e O Pequeno Lorde.